Prof. Dr.  Jack Brandão
 
 
Literatura
 
 

Pressupostos para a análise da representação poética

no século XVII

 

     A poética do século XVII não deve ser entendida como uma poética de experiências pessoais no sentido contemporâneo, já que se baseia em formas, temas e conceitos preestabelecidos, mormente na filosofia e na retórica antigas. A literatura é, nesse momento, uma representação retoricamente codificada, em que o eu lírico individual cede espaço a um coletivo, seguindo os preceitos sociais vigentes.

     Não há, dessa forma, o conceito de plágio, desconhece-se tanto a originalidade – no sentido romântico – , quanto a empiria, visto que todos os preceitos já estavam predeterminados na fonte retórica dos auctores que deveriam ser imitados, afinal não só eram uma fonte do saber, como também um tesouro da ciência e da filosofia da vida. (CURTIUS, 1996, p. 95) Assim, a idéia de uma força da imaginação criadora do artista – idéia desconhecida pelos gregos, como demonstra a inexistência de uma palavra para exprimi-la (ibidem, p. 485) – bem como uma genialidade individual pouco significavam, pois o que importava era a habilidade técnica – verossímil e retórica – no emprego das tópicas apropriadas, efetuada pelos poetas. Estes buscavam a emulação (aemulatio), que consistia na superação operada tecnicamente via imitação (mímesis), e seria, exatamente, esse superar que daria prazer àquele público, que também dominava o sistema de prescrições do qual o autor se servia.

     As relações sociais no período – assim como naquele fazer artístico – eram, segundo nosso padrão hodierno, igualmente rígidas, não havia o conceito contemporâneo de democracia, já que a sociedade estava embasada nos privilégios e na demonstração de superioridade de um estamento sobre o outro, tanto nas relações de poder quanto nas de conhecimento. Comprova-se isso ao verificarmos que o tipo humano que melhor representava a racionalidade do momento era o discreto, ideal de excelência humana, cujos padrões eram o engenho, a prudência, a agudeza, a dissimulação honesta, o conhecimento de retórica, da poesia, de história e filosofia antigas. Tais qualidades eram imprescindíveis para se empregar as técnicas do decoro, normas de conveniência social em que se discernia o que era melhor para cada momento, para cada situação, seja em termos éticos, retóricos ou políticos. Aqueles que, por sua vez, tivessem esse conhecimento seriam considerados vulgos e pertenciam às classes menos privilegiadas, incluindo aí a própria burguesia.

     O decoro estabeleceria aquilo que deveria ser natural – mesmo que, para o homem do século XXI pareça-nos artificial –, e habitual, impondo limites, inclusive, para a criação artística. Assim, seria decoro, por exemplo, que cada gênero tivesse seu próprio léxico, mas quando as preceptivas dadas a determinado gênero não fossem empregadas seguindo tais normas, seria indecoroso. Quando, por exemplo, da utilização de palavras obscenas no gênero trágico; o que não se aplicaria, evidentemente, à comédia ou à farsa.

     Vemos uma sociedade mecanicista, calcada numa disciplina e organização maior que a de outros períodos, apesar de seu aparente aspecto de desordem. (MARAVALL, 1997, p. 126) Para todos os momentos da vida, haverá sempre uma resposta com cada um sabendo exatamente qual é o seu papel no palco do mundo. Este faria parte integrante da tópica do grande teatro do mundo que se converteria em um instrumento imobilista da maior eficácia (ibidem, p. 255), por isso todo comportamento barroco tende a ser uma moral da acomodação (ibidem, p. 259), já que os poderes sociais serviam-se dela para montar mecanismos de contenção e coerção sociais. (ibidem, p. 273)

     A verossimilhança, a partir dessa preceptiva, consistiria em representar aquilo que se acreditava verdadeiro, segundo as determinações sociais do período, reproduzindo, na estrutura das obras, as motivações, explicações e prescrições próprias do gênero na qual estava inserida, valendo-se do estilo e do léxico apropriados: ultrapassava-se aqui a verdade factual e adentrava a contratual e a social.

     Para que isso fosse possível, era mister a utilização do engenho, força do intelecto que compreendia dois talentos: perspicácia dialética e versatilidade retórica. Aquela penetra nas mais distantes e diminutas circunstâncias de cada assunto, esta confronta, rapidamente, todas essas circunstâncias entre si, ou com o assunto. O resultado desse trabalho do intelecto seria a agudeza, modelo cultural de uma memória social de uso dos signos partilhada coletivamente, que definiria a hierarquização de uma retórica comportamental, bem como o esquema ordenador das práticas da representação do século XVII, fosse nos livros de emblemas, de empresas, nas preceptivas retórico-poéticas, na poesia e na pintura, ou na codificação dos gêneros e estilos a que cada um pertencia, adequando-os à grande variedade de tópicas, situações e comportamentos.

     Nota-se que a Retórica aristotélica – a arte de falar, de construir o discurso artisticamente – teve um papel importante na vida do homem seiscentista, exatamente por ser uma arte de persuasão, exigir técnica, método e conhecimento do público a quem o discurso destinava-se. Para Aristóteles – que quis provar com sua obra que as rejeições de Platão à retórica eram infundadas, já que este a havia repudiado, como o fizera com a poética (CURTIUS, p. 103)

a educação retórica, combinada com o ensino da lógica e da dialética, devia capacitar o discípulo a influenciar os ouvintes. E, dado o caso, também ‘tornar mais forte a causa mais fraca’. (ibidem, p. 102)

     Para que isso fosse possível, trata em sua Retórica dos apotegmas dos auctores, em cujos versos condensavam-se experiências psicológicas e regras de vida (ibidem, p. 95), e que seriam, largamente, utilizados pelos teóricos e poetas barrocos.

     Além de Aristóteles, Quintiliano teve grande influência no século XVII e sua obra Institutio oratoria (95 A.D.), com doze volumes, considerada uma das melhores obras que nos legou a Antigüidade, é um tratado sobre a educação do homem. Para Quintiliano, o homem ideal só pode ser orador, pois só a ele concedeu o Deus supremo e formador dos mundos o privilégio da fala.

     Dessa forma, a oratória está muito acima da astronomia, da matemática e de outras ciências (ibidem, p. 104), logo se deve dar importância aos auctores e a seus apotegmas, chamados por ele de sentenças, cujos versos deveriam ser mnemônicos, a fim de serem guardados de cor, colecionados e dispostos em ordem alfabética para facilmente serem consultados e empregados. (ibidem, p. 95) Dessa forma, a retórica teria grande abrangência no século XVII, e o artista do período faria da mesma largo emprego, já que toda representação, seria codificada retoricamente. Isso, implicava seu profundo conhecimento, pois a arte do período seria puramente mimética e sistêmica. Conheciam-se não só todas as cinco partes da retórica , como as situações em que deveriam ser empregados seus argumentos. Esses eram chamados de topoi – tópicas – em grego, e loci communes – lugar-comum – em latim. Empregavam-se, originalmente, na elaboração de discursos, entretanto

a poesia também impregnou-se de espírito retórico. A retórica perdeu, destarte, seu sentido primordial, sua razão de ser. Por outro lado, penetrou em todos os gêneros literários. (...) Assumem os topoi uma nova função: transformam-se em clichês de emprego universal na literatura e espalham-se por todos os terrenos da vida literária. (CURTIUS, p. 109)

     Outro elemento fundamental para se compreender a representação no século XVII é o elemento sacro. A divindade estaria presente em tudo e em todas as relações do homem com o mundo que o cerca, isso ficava evidente na leitura que os artistas da época faziam da natureza: nela tudo possuía um significado, até mesmo no ato de proclamar sermões, Deus se fazia presente nas palavras proferidas; som e conceito estavam intrinsecamente unidos, daí a crença no esconjuro e na maldição. Havia uma interpretação teológica do mundo e este era a própria representação do divino: tudo na natureza tinha um significado e o significado das coisas não só era a Palavra de Deus (JÖNS, 1966, p. 31) como as coisas eram sua portadora. (ibidem, p. 32)

     Diferente da literatura profana com seu senso literal – sensus litteralis –, a Sagrada Escritura possui tanto um espiritual quanto um místico – sensus espiritualis e mysticus –, ou seja, enquanto esta com seu sentido alegórico ensina o significado da história da salvação à alma cristã, aquela nos dá o fato. (ibidem, p. 30) A alegoria transmitida pelo sagrado deveria ser, forçosamente, complexa e obscura, porque se consolida por meio complexos verbais que buscavam ser imutáveis; dessa forma, para o homem do século XVII, a escrita alfabética não teria tanta condição de expressar o divino, por isso se buscou outras formas de escrita que pudessem transmitir o divino, como foi o caso dos hieróglifos. (BENJAMIM, 1984, p. 197) Assim,

o desejo de assegurar o caráter sagrado da escrita – o conflito entre a validade sagrada e a inteligibilidade profana está sempre presente − impele essa escrita a complexos sinais, a hieróglifos. É o que se passa com o Barroco. Externamente e estilisticamente – na contundência das formas tipográficas como no exagero das metáforas − a palavra escrita tende à expressão visual. (ibidem, p. 197-198)

     A alegoria será então o esforço científico para o conhecimento da Palavra de Deus e portanto a base da Teologia (JÖNS, p. 31), que permeará todas as relações do período, pois ela mesma, embora uma convenção como qualquer escrita, era vista como criada, da mesma forma que a escrita sagrada. (BENJAMIM, p. 197)

    

 

 

 










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