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O cortiço
D
eterminismoA obra transcorre em um espaço físico
delimitado e descreve um grupo social definido. Um dos maiores
valores de Aluísio, que vemos retratados em O Cortiço é sua
facilidade em fixar conjuntos humanos, em fazer uma análise de tipos
sociais, só que esses só se manifestam em decorrência do meio, pois
o grande personagem na verdade é o conjunto, ou seja, o cortiço. O
ambiente determina os comportamentos humanos.
Como exemplo, podemos citar as transformações
pelas quais passam os portugueses João Romão e Jerônimo, que são
fruto do conflito raça X meio. O primeiro, após enriquecer e por
invejar seu vizinho rival Miranda, aristocratiza-se. O segundo
declina moralmente ao ceder aos apelos do desejo carnal suscitados
por Rita Baiana.
Outros personagens também têm seus destinos
intimamente vinculados ao meio que vivem, como Pombinha, menina pura
que vivia no cortiço, mas que, por estar em um ambiente degradante,
acaba se casando e depois se separando, passando a viver com Leónie,
uma prostituta que antes de Pombinha casar havia levado a menina a
experimentar atos homossexuais. Seguindo o mesmo ciclo, levará à
prostituição Senhorinha, filha de Jerônimo e Piedade de Jesus.
·
E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que
sufocavam a menina, enchendo-a de espanto e de um instintivo temor
(...) Léonie fingia prestar-lhe atenção e nada mais fazia do que
afagar-lhe a cintura, as coxas e o colo. Depois, como que
distraidamente, começou a desabotoar-lhe o corpinho do vestido.
(...) E, apesar dos protestos, das súplicas e até das lágrimas da
infeliz, arrancou-lhe a última vestimenta, e precipitou-se contra
ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgar-lhe com os lábios o róseo
bico do peito. (...) Pombinha arfava, relutando; mas o atrito
daquelas duas grossas pomas irrequietas sobre o seu mesquinho peito
de donzela impúbere, e o roçar vertiginoso daqueles cabelos ásperos
e crespos nas estações mais sensitivas da sua feminilidade, acabaram
por foguear-lhe a pólvora do sangue, desertando-lhe a razão ao
rebate dos sentidos. (Capítulo XI)
O clima quente dos trópicos também é um
elemento determinista no romance. Em várias passagens, o calor
encontra-se vinculado ao comportamento das personagens.
·
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. (Capítulo I)
·
E nos seus movimentos de desespero, quando levantava para
o céu os punhos fechados, dir-se-ia que não era contra o marido que
se revoltava, mas sim contra aquela amaldiçoada luz alucinadora,
contra aquele sol crapuloso, que fazia ferver o sangue aos homens e
metia-lhes no corpo luxúrias de bode. (Capítulo XVI)
·
E no entanto o sol, único causador de tudo aquilo,
desaparecia de todo nos limbos do horizonte, indiferente, deixando
atrás de si as melancolias do crepúsculo, que é a saudade da terra
quando ele se ausenta, levando consigo a alegria da luz e do calor.
(Capítulo)
Sensorialismo
Um dos pontos estilísticos mais importantes em
O Cortiço é a minuciosa descrição de ambientes e personagens, da
qual emergem elementos perceptíveis pelos sentidos, para compor um
quadro de sons, cores, cheiros e formas.
Em alguns casos, tais descrições adquirem um
caráter decisivo para a narrativa, como no exemplo abaixo, em que a
dança de Rita Baiana, combinada com sua voz e seu cheiro, vai
provocar uma radical mudança de comportamento em Jerônimo:
·
Ela saltou em meio da roda, com os
braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora
para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo
carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo
de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer
toda, como se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em
que se não toma pé e nunca se encontra fundo. (...) tinha o mágico
segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros
que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem
aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e
suplicante. (Capítulo VII)
A natureza do Brasil também provocou mudanças
em Jerônimo:
·
Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele, dia
a dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os
sentidos (...) A vida americana e a natureza do Brasil
patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o
comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição, para
idealizar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se
liberal, imprevidente e franco, mais amigo de gastar que de guardar;
adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres, e volvia-se preguiçoso,
resignando-se, vencido, às imposições do sol e do calor, muralha de
fogo com que o espírito eternamente revoltado do último tamoio
entrincheirou a pátria contra os conquistadores aventureiros. E
assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos
singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se. (Capítulo
IX)
As personagens são todos sensíveis a um código sonoro, visual, aromático e tátil. Estão expostos às leis naturais reagindo dentro de um princípio de estímulo e resposta em relação ao ambiente. Outro exemplo é a imagem do sol e sua interferência não apenas sobre a comunidade, mas sobre uma personagem especial, Pombinha:
·
E suspirando, espreguiçou-se toda num enleio de volúpia ascética. Lá
do alto o sol a fitava obstinadamente, enamorado das suas mimosas
formas de menina. Ela sorriu para ele, requebrando os olhos, e então
o fogoso astro tremeu e agitou-se, e, desdobrando-se, abriu-se de
par em par em duas asas e principiou a fremir, atraído e perplexo.
(...) Nisto, Pombinha soltou um ai formidável e despertou
sobressaltada, levando logo ambas as mãos ao meio do corpo. E feliz,
e cheia de susto ao mesmo tempo, a rir e a chorar, sentiu o grito da
puberdade sair-lhe afinal das entranhas, em uma onda vermelha e
quente. (Capítulo XI)
Volúpia
Outro fato que é bastante destacado na obra é a volúpia, várias
cenas são descritas em cima desse tema, e essas descrições são
feitas de modo bem detalhista e realista, tomando para isso, termos
científicos, biológicos, fazendo alusão às ideias correntes na
época: o cientificismo, darwinismo e todas as demais teorias
biológicas que estavam em alta, e eram características principais do
Naturalismo. O sexo é, em O Cortiço, força mais degradante que a
ambição e a cobiça. A supervalorização do sexo, típica do
determinismo biológico, e do naturalismo, conduz Aluísio a buscar
quase todas as formas de patologia sexual, desde o acanalhamento das
relações matrimoniais, adultério, prostituição, lesbianismo, etc.
Podemos justificar essas afirmações com um trecho da história que
relata um encontro sexual de Miranda e Estela (ambos eram casados,
mas como Estela o havia traído eles não mais mantinham relações
íntimas, só que Miranda não se separava dela por causa do dinheiro):
·
Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim tão
violenta no prazer. (...) Descobriu-lhe no cheiro da pele e no
cheiro dos cabelos perfumes que nunca lhe sentira: notou-lhe outro
hálito, outro som nos gemidos e nos suspiros. E gozou-a, gozou-a
loucamente, com delírio, com verdadeira satisfação de animal no cio.
E ela também, ela também gozou, estimulada por aquela circunstância
picante do ressentimento que os desunia; gozou a desonestidade
daquele ato que a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se
toda, rangendo os dentes, grunhindo, debaixo daquele seu inimigo
odiado, achando-o também agora, como homem, melhor que nunca,
sufocando-o nos seus braços nus, metendo-lhe pela boca a língua
úmida e em brasa. (Capítulo I)
Zoomorfismo
O Naturalismo manifesta grande interesse pelos
instintos (principalmente o sexual. Algumas vezes o tema em destaque
não é o ato sexual em si, mas também a sensualidade), pois eles são
encarados como determinantes de comportamento. Quando as personagens
se deixam guiar pelos instintos, acabam sendo comparados aos animais.
Tal técnica chama-se zoomorfismo. A zoomorfização dos habitantes do
cortiço é um procedimento constante ao longo da obra e, apesar de
estar muitas vezes ligada ao comportamento sexual, pode também
servir para metaforizar ações vinculadas à tristeza, ao trabalho, à
procriação.
·
Também cantou. E cada verso que vinha da sua boca de
mulata era um arrulhar choroso de pomba no cio. E o Firmo, bêbado de
volúpia, enroscava-se todo ao violão; e o violão e ele gemiam com o
mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as vozes de
bichos sensuais, num desespero de luxúria que penetrava até ao
tutano com línguas finíssimas de cobra. (Capítulo X)
·
E o mugido lúgubre daquela pobre criatura abandonada
antepunha à rude agitação do cortiço uma nota lamentosa e tristonha
de uma vaca chamando ao longe, (...) assentada à soleira de sua
porta, paciente e ululante como um cão que espera pelo dono,
maldizia a hora em que saíra da sua terra (...). (Capítulo XVI)
·
(...) deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca
deixando de receber, (...) enganando os fregueses, roubando nos
pesos e nas medidas, (...) trabalhando e mais a amiga como uma junta
de bois, João Romão veio afinal a comprar uma boa parte da bela
pedreira (...). (Capítulo I)
·
(...) e as mulheres iam despejando crianças com uma
regularidade de gado procriador. (Capítulo XIII)
·
(...) e ouvia, a contragosto, o grosseiro rumor que vinha
da estalagem numa exalação forte de animais cansados. Não podia
chegar à janela sem receber no rosto aquele bafo, quente e sensual,
que o embebedava com o seu fartum de bestas no coito. (Capítulo II)
·
Daí a pouco, em volta das bicas era um zumzum crescente;
uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. (Capítulo III)
Os elementos marcam-se pela sua impessoalidade,
dissolvidos na comunidade instintiva e animal. Para ressaltar esses
seres primitivos, o narrador acentua a degradação dos tipos
aproximando-os insistentemente de animais e conferindo-lhes apelidos.
Leandra com “ancas de anima do campo”; Neném como uma “enguia”;
Paula com “dente de cão” e Pombinha, com esse nome no diminutivo
ocultando seu verdadeiro nome, significa a fusão do natural e do
cultural, quando o narrador privilegia o apelido de caracterização
zoomórfica. E assim, narrativa adentro persiste um movimento de
zoomorfização das criaturas, nivelando-as por baixo, pelo que tem de
mais elementar. As personagens se xingam de cão, vaca, galinha,
porco; Jerônimo com suas “lascívias de macaco e cheiro sensual dos
bodes”; etc.
A mudança do cortiço
O cortiço é personificado no decorrer da obra,
sendo muitas vezes tratado como um único personagem. Se Jerônimo e
João Romão, entre outros, sofrem ao longo do romance uma substancial
transformação causada pelo meio, o cortiço em si também vai
experimentar um processo de mutação semelhante ao de seu dono.
Assim como João Romão passa de modesto
empregado de uma venda a rico negociante de aparência aristocrática,
o cortiço também nasce, cresce e, após sofrer um incêndio, é
reconstruído de maneira a tornar-se uma honrada vila. Ou seja, como
seu dono, o cortiço também se aristocratiza.
Dessa maneira, enquanto os moradores do local
se zoomorfizam, o cortiço antropomorfiza-se, ou seja, ganha
características humanas.
·
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo,
não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um
acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de
chumbo. (Capítulo III)
A mulher
A mulher participa do regime de trocas, ela dá
e recebe. A posição da mulher na estética naturalista, no entanto, é
bem diversa daquela na estética romântica. Descrita mais
objetivamente, enraizada na realidade, ela surge sem as idealizações
e falseamentos. Nessa narrativa de Azevedo, a mulher é descrita
principalmente como fêmea, que se acasala com o macho por interesses
físicos e materiais.
Pontuamos um aspecto importante na obra, a
redução da mulher a três condições: a) como objeto – usadas e
aviltadas pelo homem, escravas ao realizarem os afazeres domésticos
e trabalhistas (a maioria das mulheres do cortiço eram lavadeiras)
ou em objeto sexual, pronta a todo o momento a satisfazer as
necessidades dos homens;
b) como objeto e sujeito, simultaneamente;
c) como sujeito, são as que se independem do
homem, prostituindo-se.
A mulher-objeto
Exemplifica-se inicialmente em Bertoleza,
elemento feminino que se associa ao masculino (João Romão) para
criação do cortiço. Macho e fêmea trabalham dia e noite, e quanto
mais o tempo passa, mais o macho se afasta da fêmea, uma vez que ela
era peça fundamental apenas no princípio da carreira de Romão:
·
à medida que ele galgava posição social, a desgraçada
descia mais e mais, fazia-se mais escrava e rasteira.
Outro exemplo é Zulmira: vai ser outro degrau
utilizado por Romão. As ligações entre ele e Bertoleza e ele e
Zulmira são totalmente circunstanciais. As mulheres aí são elementos
cambiáveis no comércio que ele opera.
A mulher sujeito-objeto
A relação Estela / Miranda coloca os dois em
nível de igualdade. Ambos se beneficiam. Essa relação ajusta o
regime de trocas sexuais, que são a contrapartida das trocas
econômicas e sociais.
– Ora! Explicava o marido. Eu me sirvo dela
como quem se serve de uma escarradeira!”. (Capítulo II)
A dupla Rita / Jerônimo exemplifica o mesmo
regime de trocas. O Narrador vem ao nível do enunciado para dizer
que entre eles se cumpria o ritual da atração racial. Rita é
metonímia da natureza tropical enquanto Jerônimo é o símbolo daquilo
que o autor chama de “raça superior”:
·
(...) mas desde que Jerônimo propendeu para ela,
fascinado-a com sua tranquila seriedade de animal bom e forte, o
sangue da mestiça reclamou os seus direitos de apuração, e Rita
preferiu no europeu o macho de raça superior. (Capítulo XV)
Todas essas personagens têm a caracterizá-las
ou a permanência no mesmo status econômico e social ou a decadência.
Nenhuma sai de seu conjunto, as transformações são endógenas e não
exógenas como se dará com Léonie, Pombinha, Senhorinha.
A mulher-sujeito
O termo sujeito aqui implica numa interpretação
dos valores ideológicos da comunidade descrita. Assim como João
Romão consegue se impor afirmando-se enquanto indivíduo dentro dos
padrões vigentes na sociedade, aquelas mulheres (Léonie, Pombinha,
Senhorinha) também se destacam na dependência contínua ao macho e
passam a exercer o poder através do sexo-luxúria.
Léonie, protótipo da mulher do cortiço que saiu
para a prostituição de elite. Ela pode desfilar com os amantes pelas
ruas e teatros com a mesma leveza com que regressa ao cortiço para
ver sua afilhada. O modelo de Léonie repete-se em Pombinha, que é
por ela seduzida, deixando de lado seu aspecto angelical para
assumir a imagem da “serpente”, que o narrador maneja para
classificar o vigor do instinto e a ameaça sexual. Repete-se o
determinismo: Pombinha será devorada por Léonie por meio da
iniciação homossexual:
·
A serpente vencia afinal: Pombinha foi, pelo próprio pé,
atraída, meter-se-lhe na boca. (Capítulo XXII)
Tal modelo se repete com a filha de Jerônimo /
Piedade, atraída por Pombinha:
·
A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o
cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina
desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria.
(Capítulo XXII)
A exploração do homem pelo homem
No primeiro parágrafo do livro encontramos João
Romão como proprietário de uma venda. Depois que se associa a
Bertoleza, explorando-lhe o corpo e o trabalho, sua propriedade se
expande: compra um pouco de terra ao fundo da taverna, rouba
material do terreno vizinho, acaba construindo três casinhas
·
que foram o ponto de partida do grande cortiço São Romão.
Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia
vendeiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos de
sua bodega; e, à proporção que o conquistava, reproduziam-se os
quartos e o número de moradores. (Capítulo I)
Por outro
lado, seu negócio melhorava. Com sua febre de possuir, ele
transformava a simples taverna num bazar com produtos importados, e
além de Bertoleza tem a vários caixeiros. Ao fim o cortiço já se
compõe de noventa e cinco moradias. Realizou-se o modelo biológico da
transformação da vida pela meiose progressiva:
·
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade
quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um
mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea,
ali mesmo, daquele lameiro, a multiplicar-se como larvas no esterco.
(Capítulo I)
A personagem Bertoleza (escrava fujona) era
extorquida por João Romão, dono do cortiço. Este era uma pessoa
mesquinha, que não media esforços para conseguir o que queria, nem
que para isso tivesse que passar por cima dos outros. Bertoleza
trabalhava dia e noite sem parar e não era reconhecida, até porque
no final da obra João, querendo se casar com a filha do Miranda para
adquirir riqueza, manda os verdadeiros donos da escrava buscá-la,
para poder se casar com Zulmira. A negra no ato vendo-se traída pelo
companheiro enfia uma faca no ventre rasgando-o. A descrição dos
fatos nessa cena é de forma tão cientificista e realista que
parecemos visualizá-la.
·
Os policiais, vendo que ela se não
despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se
com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém
conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o
ventre de lado a lado. E depois emborcou para a frente, rugindo e
esfocinhando moribunda numa lameira de sangue. João Romão fugira até
ao canto mais escuro do armazém, tapando o rosto com as mãos. Nesse
momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de
abolicionistas que vinham, de casaca, trazer-lhe respeitosamente o
diploma de sócio benemérito. Ele mandou que os conduzissem para a
sala de visitas. (Capítulo XXIII)
Outro exemplo em que podemos perceber a força
da ambição:
·
– Deixa estar, conversava ele na cama com a Bertoleza;
deixa estar que ainda hei de entrar pelos fundos da casa, se é que
não lhe entre pela frente! Mais cedo ou mais tarde como-lhe, não
duas braças, mas seis, oito, todo o quintal e até o próprio sobrado
talvez!
E dizia isto com uma convicção de quem tudo
pode e tudo espera da sua perseverança, do seu esforço
inquebrantável e da fecundidade prodigiosa do seu dinheiro, dinheiro
que só lhe saía das unhas para voltar multiplicando.
Desde que a febre de possuir se apoderou dele
totalmente, todos os seus atos, todos, fosse o mais simples, visavam
um interesse pecuniário. Só tinha uma preocupação: aumentar os bens.
(...) Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma
loucura, um desespero de acumular, de reduzir tudo a moeda.
(Capítulo I)
Finalizando, podemos perceber que Aluísio, de fato, retratava a
sociedade da época, apontando as falhas do sistema ao denunciar a
exploração dos cortiços, que na verdade não foge muito da nossa
realidade, com pessoas querendo mais e mais poder e dinheiro,
pensando somente em si mesmas, enquanto milhões de pessoas vivem
marginalizadas em favelas e nas ruas.
Por isso, Aluísio Azevedo pode ser considerado
um escritor universal (pelo que é apresentado no livro), pois sua
obra é atemporal, é sempre atual e de suma importância para
entendermos o que a sociedade estava enfrentando na época e para que
possamos refletir sobre a situação degradante que por ora vivemos e
nem sequer percebemos. Ele traz à tona, o que os livros de história,
os meios de comunicação e os políticos não nos mostram: que estamos
muito longe de ser uma sociedade ideal.
O seu estudo é indispensável na área das ciências humanas, pois traz-nos não somente um tema qualquer, mas uma análise crítica da vida social.