A
POESIA LÍRICA
Já Bocage não sou!... À cova escura
Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!
Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui... A santidade
Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!
O Ciúme
Entre as tartáreas forjas, sempre acesas,
Jaz aos pés do tremendo, estígio nume,
O carrancudo, o rábido Ciúme,
Ensanguentadas as corruptas presas.
Traçando o plano de cruéis empresas,
Fervendo em ondas de sulfúreo lume,
Vibra das fauces o letal cardume
De hórridos males, de hórridas tristezas.
Pelas terríveis Fúrias instigado,
Lá sai do Inferno, e para mim se avança
O negro monstro, de áspides toucado.
Olhos em brasa de revés me lança;
Oh dor! Oh raiva! Oh morte!... Ei-lo a meu lado
Ferrando as garras na vipérea trança.
O autor aos seus versos
Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:
Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados:
Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz e tirania:
Desculpa tendes, se valeis tão pouco,
Que não pode cantar com melodia
Um peito de gemer cansado e rouco.
A Camões, comparando com os dele os seus próprios
infortúnios
Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar co sacrílego gigante:
Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:
Lubíbrio, como tu, da sorte dura,
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:
Modelo meu tu és... Mas, ó tristeza!...
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da natureza.
Em louvor do grande Camões
Sobre os contrários o terror e a morte
Dardeje embora Aquiles denodado,
Ou no rápido carro ensanguentado
Leve arrastos sem vida o Teuco forte:
Embora o bravo Macedônio corte
Co'a fulminante espada o nó fadado,
Que eu de mais nobre estímulo tocado,
Nem lhe amo a glória, nem lhe invejo a sorte:
Invejo-te, Camões, o nome honroso;
Da mente criadora o sacro lume,
Que exprime as fúrias de Lieu raivoso:
Os ais de Inês, de Vênus o queixume,
As pragas do gigante proceloso,
O céu de Amor, o inferno do Ciúme.
Retrato próprio
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste da facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno.
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades:
Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.
A lamentável catástrofe de D. Inês de Castro
Da triste, bela Inês, inda os clamores
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos Céus andas pedindo
Justiça contra os ímpios matadores;
Ouvem-se inda na Fonte dos Amores
De quando em quando as náiades carpindo;
E o Mondego, no caso refletindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:
Inda altos hinos o universo entoa
A Pedro, que da morte formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa:
Milagre da beleza e da ternura!
Abre, desce, olha, geme, abraça e c'roa
A malfadada Inês na sepultura.
Desejo Amante
Elmano, de teus mimos anelante,
Elmano em te admirar, meu bem, não erra;
Incomparáveis dons tua alma encerra,
Ornam mil perfeições o teu semblante:
Granjeias sem vontade a cada instante
Claros triunfos na amorosa guerra:
Tesouro que do Céu vieste à Terra,
Não precisas dos olhos de um amante.
Oh!, se eu pudesse, Amor, oh!, se eu pudesse
Cumprir meu gosto! Se em altar sublime
Os incensos de Jove a Lília desse!
Folgara o coração quanto se oprime;
E a Razão, que os excessos aborrece,
Notando a causa, revelara o crime.
Quantas vezes, Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, Razão, me tens curado?
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido!
Tal, que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até regia a mão do fado,
Onde o Sol, bem de todos, lhe é vedado,
Depois com ferros vis se vê cingido:
Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo da existência à morte!
Travam-se gosto, e dor; sossego e lida;
É lei da natureza, é lei da sorte,
Que seja o mal e o bem matiz da vida.
O Suspiro
Voai, brandos meninos tentadores,
Filhos de Vênus, deuses da ternura,
Adoçai-me a saudade amarga e dura,
Levai-me este suspiro aos meus amores:
Dizei-lhe que nasceu dos dissabores
Que influi nos corações a formosura;
Dizei-lhe que é penhor da fé mais pura,
Porção do mais leal dos amadores:
Se o fado para mim sempre mesquinho,
A outro of'rece o bem de que me afasta,
E em ais lhe envia Ulina o seu carinho:
Quando um deles soltar na esfera vasta,
Trazei-o a mim, torcendo-lhe o caminho;
Eu sou tão infeliz, que isso me basta.
Esperança Amorosa
Grato silêncio, trêmulo arvoredo,
Sombra propícia aos crimes e aos amores,
Hoje serei feliz! --- Longe, temores,
Longe, fantasmas, ilusões do medo.
Sabei, amigos Zéfiros, que cedo
Entre os braços de Nise, entre estas flores,
Furtivas glórias, tácitos favores,
Hei-de enfim possuir: porém segredo!
Nas asas frouxos ais, brandos queixumes
Não leveis, não façais isto patente,
Quem nem quero que o saiba o pai dos numes:
Cale-se o caso a Jove onipotente,
Porque, se ele o souber, terá ciúmes,
Vibrará contra mim seu raio ardente.
Já o Inverno, expremendo as cãs nevosas
Já o Inverno, expremendo as cãs nevosas,
Geme, de horrendas nuvens carregado;
Luz o aéreo fuzil, e o mar inchado
Investe ao pólo em serras escumosas;
Ó benignas manhãs!, tardes saudosas,
Em que folga o pastor, medrando o gado,
Em que brincam no ervoso e fértil prado
Ninfas e Amores, Zéfiros e Rosas!
Voltai, retrocedei, formosos dias:
Ou antes vem, vem tu, doce beleza
Que noutros campos mil prazeres crias;
E ao ver-te sentirá minha alma acesa
Os perfumes, o encanto, as alegrias,
Da estação que remoça a natureza.
POESIA ERÓTICA
Soneto de todas as putas
Não lamentes, oh Nise, o teu
estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm
reinado:
Dido foi puta, e puta d'um
soldado;
Cleópatra por puta alcança a
c'roa;
Tu, Lucrécia, com toda a tua
proa,
O teu cono não passa por
honrado:
Essa da Rússia imperatriz
famosa,
Que inda há pouco morreu (diz a
Gazeta)
Entre mil porras expirou
vaidosa:
Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, oh Nise,
duvidosa
Que isso de virgo e honra é
tudo peta.
SONETO DA DONZELA ANSIOSA
Arreitada donzela em fofo leito,
Deixando erguer a virginal
camisa,
Sobre as roliças coxas se
divisa
Entre sombras sutis pachacho
estreito:
De louro pêlo um círculo
imperfeito
Os papudos beicinhos lhe
matiza;
E a branca crica, nacarada e
lisa,
Em pingos verte alvo licor
desfeito:
A voraz porra as guelras
encrespando
Arruma a focinheira, e entre
gemidos
A moça treme, os olhos
requebrados:
Como é inda boçal, perde os
sentidos:
Porém vai com tal ânsia
trabalhando,
Que os homens é que vêm a ser
fodidos.
SONETO DA ESCULTURA
ESCANDALOSA
Esquentado frisão, brutal
masmarro
Girava em Santarém na pobre
feira;
Eis que divisa ao longe em
couva ceira
Seus bons irmãos seráficos de
barro:
O bruto, que arremeda um boi de
carro
Na carranca feroz, parte à
carreira,
Os sagrados bonecos escaqueira,
E arranca de ufania um longo
escarro:
N'alma o santo furor lhe
arqueja, e berra;
Mas vós enchei-vos de íntimo
alvoroço,
Povos, que do burel sofreis a
guerra:
Que dos bonzos de barro o vil
destroço
É presságio talvez de irem por
terra
Membrudos fradalhões de carne e
osso!
SONETO DA CÓPULA ESCULPIDA
Nesta, cuja memória esquece à
Fama,
Feira, que de Santarém vem de
ano em ano,
Jazia co'uma freira um
franciscano;
Eram de barro os dois, de barro
a cama:
Co'a mão, que à virgindade
injúrias trama,
Pretendia o cabrão ferrar-lhe o
pano;
Eis que um negro barrasco, um
Frei Tutano
O espetáculo vê, que os rins
lhe inflama:
"Irra! Vens me atiçar, gente
danada!
Não basta a felpa dos buréis
opacos,
Com que a carne rebelde anda
ralada?"
"Fora, vis tentações, fora,
velhacos!..."
Disse, e ao ríspido som de
atroz patada
O escandaloso par converte em
cacos.
SONETO DO PRAZER MAIOR
Amar dentro do peito uma
donzela;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais
pura;
Falar-lhe, conseguindo alta
ventura,
Depois da meia-noite na janela:
Fazê-la vir abaixo, e com
cautela
Sentir abrir a porta, que
murmura;
Entrar pé ante pé, e com
ternura
Apertá-la nos braços casta e
bela:
Beijar-lhe os vergonhosos,
lindos olhos,
E a boca, com prazer o mais
jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois
pimpolhos:
Vê-la rendida enfim a Amor
fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos
folhos;
É este o maior gosto que há no
mundo.