1
Pastores, que
levais ao monte o gado,
Vêde lá como andais por essa serra;
Que para dar contágio a toda a terra,
Basta ver se o meu rosto magoado:
Eu ando (vós me
vedes) tão pesado;
E a pastora infiel, que me faz guerra,
É a mesma, que em seu semblante encerra
A causa de um martírio tão cansado.
Se a quereis
conhecer, vinde comigo,
Vereis a formosura, que eu adoro;
Mas não; tanto não sou vosso inimigo:
Deixai, não a
vejais; eu vo-lo imploro;
Que se seguir quiserdes, o que eu sigo,
Chorareis, ó pastores, o que eu choro.
2
Sou pastor; não
te nego; os meus montados
São esses, que aí vês; vivo contente
Ao trazer entre a relva florescente
A doce companhia dos meus gados;
Ali me ouvem os
troncos namorados,
Em que se transformou a antiga gente;
Qualquer deles o seu estrago sente;
Como eu sinto também os meus cuidados.
Vós, ó troncos,
(lhes digo) que algum dia
Firmes vos contemplastes, e seguros
Nos braços de uma bela companhia;
Consolai-vos
comigo, ó troncos duros;
Que eu alegre algum tempo assim me via;
E hoje os tratos de Amor choro perjuros.
3
Se sou pobre
pastor, se não governo
Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verão, outono, estio, inverno;
Nem por isso
trocara o abrigo terno
Desta choça, em que vivo, coas enchentes
Dessa grande fortuna: assaz presentes
Tenho as paixões desse tormento eterno.
Adorar as
traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar aflito o dia, o mês, e o ano;
Seja embora
prazer; que a meu ouvido
Soa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruído.
4
Brandas
ribeiras, quanto estou contente
De ver nos outra vez, se isto é verdade!
Quanto me alegra ouvir a suavidade,
Com que Fílis entoa a voz cadente!
Os rebanhos, o
gado, o campo, a gente,
Tudo me está causando novidade:
Oh como é certo, que a cruel saudade
Faz tudo, do que foi, mui diferente!
Recebei (eu vos
peco) um desgraçado,
Que andou té agora por incerto giro
Correndo sempre atrás do seu cuidado:
Este pranto,
estes ais, com que respiro,
Podendo comover o vosso agrado,
Façam digno de vós o meu suspiro.
5
Onde estou?
Este sítio desconheço:
Quem fez tão diferente aquele prado?
Tudo outra natureza tem tomado;
E em contemplá-lo tímido esmoreço.
Uma fonte aqui
houve; eu não me esqueço
De estar a ela um dia reclinado:
Ali em vale um monte está mudado:
Quanto pode dos anos o progresso!
Árvores aqui vi
tão florescentes,
Que faziam perpétua a primavera:
Nem troncos vejo agora decadentes.
Eu me engano: a
região esta não era:
Mas que venho a estranhar, se estão presentes
Meus males, com que tudo degenera!
6
Este é o rio, a
montanha é esta,
Estes os troncos, estes os rochedos;
São estes inda os mesmos arvoredos;
Esta é a mesma rústica floresta.
Tudo cheio de
horror se manifesta,
Rio, montanha, troncos, e penedos;
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.
Oh quão
lembrado estou de haver subido
Aquele monte, e as vezes, que baixando
Deixei do pranto o vale umedecido!
Tudo me está a
memória retratando;
Que da mesma saudade o infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.
7
Fatigado da
calma se acolhia
Junto o rebanho à sombra dos salgueiros;
E o sol, queimando os ásperos oiteiros,
Com violência maior no campo ardia.
Sufocava se o
vento, que gemia
Entre o verde matiz dos sovereiros;
E tanto ao gado, como aos pegureiros
Desmaiava o calor do intenso dia.
Nesta ardente
estação, de fino amante
Dando mostras Daliso, atravessava
O campo todo em busca de Violante.
Seu descuido em
seu fogo desculpava;
Que mal feria o sol tão penetrante,
Onde maior incêndio a alma abrasava.
8
Nise ? Nise ?
onde estás ? Aonde espera
Achar te uma alma, que por ti suspira,
Se quanto a vista se dilata, e gira,
Tanto mais de encontrar te desespera!
Ah se ao menos
teu nome ouvir pudera
Entre esta aura suave, que respira!
Nise, cuido, que diz; mas é mentira.
Nise, cuidei que ouvia; e tal não era.
Grutas,
troncos, penhascos da espessura,
Se o meu bem, se a minha alma em vós se esconde,
Mostrai, mostrai me a sua formosura.
Nem ao menos o
eco me responde!
Ah como é certa a minha desventura!
Nise ? Nise ? onde estás ? aonde ? aonde ?
9
Quem deixa o
trato pastoril amado
Pela ingrata, civil correspondência,
Ou desconhece o rosto da violência,
Ou do retiro a paz não tem provado.
Que bem é ver
nos campos transladado
No gênio do pastor, o da inocência!
E que mal é no trato, e na aparência
Ver sempre o cortesão dissimulado!
Ali respira
amor sinceridade;
Aqui sempre a traição seu rosto encobre;
Um só trata a mentira, outro a verdade.
Ali não há
fortuna, que soçobre;
Aqui quanto se observa, é variedade:
Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!
10
Formoso, e
manso gado, que pascendo
A relva andais por entre o verde prado,
Venturoso rebanho, feliz gado, Que à bela
Antandra estais obedecendo;
Já de Corino os
ecos percebendo
A frente levantais, ouvis parado;
Ou já de Alcino ao canto levantado,
Pouco e pouco vos ides recolhendo;
Eu, o mísero
Alfeu, que em meu destino
Lamento as sem razões da desventura,
A seguir vos também hoje me inclino:
Medi meu rosto:
ouvi minha ternura;
Porque o aspecto, e voz de um peregrino
Sempre faz novidade na espessura.
11
Toda a mortal
fadiga adormecia
No silêncio, que a noite convidava;
Nada o sono suavíssimo alterava
Na muda confusão da sombra fria:
Só Fido, que de
amor por Lise ardia,
No sossego maior não repousava;
Sentindo o mal, com lágrimas culpava
A sorte; porque dela se partia.
Vê Fido, que o
seu bem lhe nega a sorte;
Querer enternecê-na é inútil arte;
Fazer o que ela quer, é rigor forte:
Mas de modo
entre as penas se reparte;
Que à Lise rende a alma, a vida à morte:
Por que uma parte alente a outra parte.
12
Deixa, que por
um pouco aquele monte
Escute a glória, que a meu peito assiste:
Porque nem sempre lastimoso, e triste
Hei de chorar à margem desta fonte.
Agora, que nem
sombra há no horizonte,
Nem o álamo ao zéfiro resiste,
Aquela hora ditosa, em que me viste
Na posse de meu bem, deixa, que conte.
Mas que modo,
que acento, que harmonia
Bastante pode ser, gentil pastora,
Para explicar afetos de alegria!
Que hei de
dizer, se esta alma, que te adora,
Só costumada às vozes da agonia,
A frase do prazer ainda ignora!
13
Ai de mim! como
estou tão descuidado!
Como do meu rebanho assim me esqueço,
Que vendo o trasmalhar no mato espesso,
Em lugar de o tornar, fico pasmado!
Ouço o rumor
que faz desaforado
O lobo nos redis; ouço o sucesso
Da ovelha, do pastor; e desconheço
Não menos, do que ao dono, o mesmo gado:
Da fonte dos
meus olhos nunca enxuta
A corrente fatal, fico indeciso,
Ao ver, quanto em meu dano se executa.
Um pouco apenas
meu pesar suavizo,
Quando nas serras o meu mal se escuta;
Que triste alívio! ah infeliz Daliso!
14
De um ramo
desta faia pendurado
Veja o instrumento estar do pastor Fido;
Daquele, que entre os mais era aplaudido,
Se alguma vez nas selvas escutado.
Ser eternamente
consagrado
Um ai saudoso, um fúnebre gemido;
Enquanto for no monte repetido
O seu nome, o seu canto levantado.
Se chegas a
este sítio, e te persuade
A algum pesar a sua desventura,
Corresponde em afetos de piedade;
Lembra te,
caminhante, da ternura
De seu canto suave; e uma saudade
Por obséquio dedica à sepultura.
15
Neste álamo
sombrio, aonde a escura
Noite produz a imagem do segredo;
Em que apenas distingue o próprio medo
Do feio assombro a hórrida figura;
Aqui, onde não
geme, nem murmura
Zéfiro brando em fúnebre arvoredo,
Sentado sabre o tosco de um penedo
Chorava Fido a sua desventura.
As lágrimas a
penha enternecida
Um rio fecundou, donde manava
D'ânsia mortal a cópia derretida:
A natureza em
ambos se mudava;
Abalava-se a penha comovida;
Fido, estátua da dor, se congelava.
16
Tu sonora
corrente, fonte pura,
Testemunha fiel da minha pena,
Sabe, que a sempre dura, e ingrata
Almena Contra o meu rendimento se conjura:
Aqui me manda
estar nesta espessura,
Ouvindo a triste voz da filomena,
E bem que este martírio hoje me ordena,
Jamais espero ter melhor ventura.
Veio a dar me
somente uma esperança
Nova idéia do ódio; pois sabia,
Que o rigor não me assusta, nem me cansa:
Vendo a tanto
crescer minha porfia,
Quis mudar de tormento; e por vingança
Foi buscar no favor a tirania.
17
Sonha em
torrentes d'água, o que abrasado
Na sede ardente está; sonha em riqueza
Aquele, que no horror de uma pobreza
Anda sempre infeliz, sempre vexado:
Assim na
agitação de meu cuidado
De um contínuo delírio esta alma presa,
Quando é tudo rigor, tudo aspereza,
Me finjo no prazer de um doce estado.
Ao despertar a
louca fantasia
Do enfermo, do mendigo, se descobre
Do torpe engano seu a imagem fria:
Que importa
pois, que a idéia alívios cobre,
Se apesar desta ingrata aleivosia,
Quanto mais rico estou, estou mais pobre.
18
Altas serras,
que ao Céu estais servindo
De muralhas, que o tempo não profana,
Se Gigantes não sois, que a forma humana
Em duras penhas foram confundindo?
lá sobre o
vosso cume se está rindo
O Monarca da luz, que esta alma engana;
Pois na face, que ostenta, soberana,
O rosto de meu bem me vai fingindo.
Que alegre, que
mimoso, que brilhante
Ele se me afigura! Ah qual efeito
Em minha alma se sente neste instante!
Mas ai! a que
delírios me sujeito!
Se quando no Sol vejo o seu semblante,
Em vós descubro ó penhas o seu peito?