Gênero Épico
A palavra épico vem do grego épos, narrativa, recitação. A poesia épica surge, no Ocidente, com Homero, poeta grego que viveu entre os séculos IX e VIII a.C. e escreveu dois poemas que constituíram os primeiros modelos épicos: a Ilíada e a Odisseia. Depois de Homero, a poesia épica, seguindo certas normas tradicionais que se baseavam na obra do poeta grego, foi cultivada até o Romantismo.
Em Roma, a epopeia mais conhecida foi a Eneida, de Virgílio. Na Idade Média, aparecem vários poemas narrativos, especialmente nos séculos XII, XIII e XIV, que se afastam dos padrões clássicos (Homero e Virgílio) pelos assuntos abordados e pela técnica narrativa. São inspirados, geralmente, em façanhas guerreiras da época da cavalaria andante. São mais conhecidos: a Canção de Rolando, o Romance de Alexandre, os romances da Távola Redonda, o
Cantar de Mio Cid.No Renascimento, com a revalorização da
Antiguidade greco-romana e a consequente imitação de sua literatura,
surgem novos poemas épicos cujo modelo são as grandes epopeias gregas e
romanas. Datam desse período o Orlando Furioso, de Ariosto,
Jerusalém Libertada, de Tasso, ambos na Itália; em Portugal, Camões
escreve
Os Lusíadas,
o maior poema da língua.
Como na Antiguidade clássica, o gênero épico, no Renascimento, deveria obedecer a certas regras, a certas normas que o caracterizavam.
Divisão da Poesia épica
O poema épico deveria ser dividido em cinco
partes, a saber:
a)
Proposição: em que o autor resumiria o assunto da
obra.
b)
Invocação: na qual o autor pedia a uma divindade
que o inspirasse em sua criação.
c)
Oferecimento: parte em que o autor dedicava seu
poema a alguém. (Não era obrigatório.)
d) Narrativa: o corpo do poema propriamente dito.
e)
Epílogo: fecho do poema. (Não obrigatório.)
A narrativa não deveria obedecer à ordem
cronológica dos fatos. Ao contrário, deveria iniciar-se o mais próximo
possível do fim do acontecimento que deu origem ao poema, retornando aos
fatos anteriores através de narrações dos personagens, de sonhos e
visões fantásticas.
A poesia épica deveria conter o chamado "maravilhoso",
isto é, a intervenção direta de seres sobrenaturais, quase sempre deuses
da mitologia greco-romana, na vida humana. Ao lado desse maravilhoso
pagão, no cristianismo surge também o maravilhoso cristão, ou seja, a
intervenção de personagens bíblicos (do Antigo ao Novo Testamento).
O gênero épico em verso apresenta três espécies:
a) Epopeia: obra épica de largo fôlego, envolvendo a história de um povo ou de uma nação, ou ainda passagens históricas de importância universal. Por exemplo,
Os Lusíadas, de Camões.b)
Poema Épico: trata, também de episódio histórico,
mas menos importante e que não ultrapassa os limites do nacional ou
mesmo do regional, embora o poema épico seja tão extenso quanto a
epopeia. Exemplo: Caramuru, de Santa Rita Durão.
c) Poemeto: mais curto que as duas espécies anteriores, trata de assunto de importância ainda menor que o do poema épico. Exemplo:
O Uraguai, de Basílio da Gama.Note-se bem que as diferenças apontadas entre as três espécies da épica clássica tradicional subordinam-se à importância do assunto tratado e às dimensões da obra, e não à valoração ou valor literário dela. Se, normalmente, a epopeia é superior em qualidade ao poema e ao poemeto, pode haver exemplos destas duas últimas espécies com valor literário superior à primeira. Entre os exemplos dados, cumpre observar que o poemeto de Basílio da Gama, O Uraguai é muito superior, literalmente, ao poema épico de Santa Rita Durão, Caramuru
.
Os Lusíadas
(Apontamentos para a aula)
escrito em versos decassílabos heróico;
oitava-rima;
esquema rimático: abababcc;
dez cantos (partes) com 1.102 estâncias (estrofes)
e 8.816 versos
Proposição:
O narrador indica qual será o tema da narração;
Formada pelas três estrofes iniciais.
O narrador se propõe a cantar os feitos dos
navegantes portugueses que atravessaram mares desconhecidos e realizaram
feitos heroicos, maiores, inclusive, que os feitos realizados na
Antiguidade:
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram:
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Em suma, o assunto do poema é a construção do
Império português, cujo núcleo narrativo é a viagem de Vasco da Gama às
Índias (1497-1499);
Ponto de vista utilizado da aristocracia
portuguesa;
Vemos a busca pela emulação: o poeta tem como modelo a Eneida de Virgílio:
Ex. As armas e o varão canto, piedoso (Virgílio)
As armas e os
barões assinalados (Camões)
Invocação
O narrador pede engenho e arte às ninfas do Tejo
(Tágides)
Dedicatória
O poema é dedicado a D. Sebastião (1554-1578):
(sexta estrofe)
E vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antígua liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande.
(oitava estrofe)
Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro,
Do Turco oriental, e do Gentio,
Que inda bebe o licor do santo rio;
Narração
Tem início na estrofe 19 com os portugueses em
meio ao Oceano Índico
Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Próteo são cortadas
Os deuses se reúnem para deliberar sobre a
sorte dos portugueses: Júpiter vê grandes realizações para os lusos;
Baco se opõe; Vênus os protege; Marte apoia Vênus:
Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
Onde o governo está da humana gente,
Se ajuntam em concílio glorioso
Sobre as cousas futuras do Oriente.
Pisando o cristalino Céu formoso,
Vêm pela Via-Láctea juntamente,
Convocados da parte do Tonante,
Pelo neto gentil do velho Atlante.
Enfrentam várias dificuldades,
principalmente de Baco (oitenta e seis):
Mas os Mouros que andavam pela praia,
Por lhe defender a água desejada,
Um de escudo embraçado e de azagaia,
Outro de arco encurvado e seta ervada,
Esperam que a guerreira gente saia,
Outros muitos já postos em cilada.
E, porque o caso leve se lhe faça,
Põem uns poucos diante por negaça,
que leva os mouros a preparar-lhes emboscadas
a fim de detê-los da empreitada (noventa e sete):
Mas o Mouro, instruído nos enganos
Que o malévolo Baco lhe ensinara,
De morte ou cativeiro novos danos,
Antes que à Índia chegue, lhe prepara:
Dando razões dos portos Indianos,
Também tudo o que pede lhe declara,
Que, havendo por verdade o que dizia,
De nada a forte gente se temia.
ao chegarem a Mombaça, outra cilada os espera:
No mar tanta tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
Vênus e as nereidas impedem que os portugueses entrem no porto de Mombaça (dezoito):
As âncoras tenaces vão levando
Com a náutica grita costumada;
Da proa as velas sós ao vento dando
Inclinam para a barra abalizada.
Mas a linda Ericina, que guardando
Andava sempre a gente assinalada,
Vendo a cilada grande, e tão secreta,
Voa do Céu ao mar como uma seta.
Vênus dirige-se a Júpiter para protestar (trinta e nove):
"Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso,
Que, para as cousas que eu do peito amasse,
Te achasse brando, afábil e amoroso,
Posto que a algum contrário lhe pesasse;
Mas, pois que contra mim te vejo iroso,
Sem que to merecesse, nem te errasse,
Faça-se como Baco determina;
Assentarei enfim que fui mofina.
Júpiter a conforma, prometendo grandes feitos aos portugueses (quarenta e quatro):
"Formosa filha minha, não temais
Perigo algum nos vossos Lusitanos,
Nem que ninguém comigo possa mais,
Que esses chorosos olhos soberanos;
Que eu vos prometo, filha, que vejais
Esquecerem-se Gregos e Romanos,
Pelos ilustres feitos que esta gente
Há-de fazer nas partes do Oriente.
Os portugueses se dirigem a Melinde, onde são recebidos por seu rei (setenta e três)
Quando chegava a frota àquela parte,
Onde o Reino Melinde já se via,
De toldos adornada, e leda de arte
Que bem mostra estimar o santo dia.
Treme a bandeira, voa o estandarte,
A cor purpúrea ao longe aparecia;
Soam os atambores o pandeiros,
E assim entravam ledos e guerreiros.
O rei de Melinde pede que Vasco da Gama
conte sobre Portugal (cento e nove):
"Mas antes, valeroso Capitão,
Nos conta, lhe dizia, diligente,
Da terra tua o clima, e região
Do mundo onde morais distintamente;
E assim de vossa antiga geração,
E o princípio do Reino tão potente,
Co'os sucessos das guerras do começo,
Que, sem sabê-las, sei que são de preço.
Vasco da Gama inicia a história de
Portugal (três):
Prontos estavam todos escutando
O que o sublime Gama contaria,
Quando, depois de um pouco estar cuidando,
Alevantando o rosto, assim dizia:
"Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De minha gente a grão genealogia:
Não me mandas contar estranha história,
Mas mandas-me louvar dos meus a glória.
O capitão conta a história de Inês de Castro (cento e vinte):
"Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
e sua morte (cento e trinta):
"Queria perdoar-lhe o Rei benino,
Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo, e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra uma dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais, e cavaleiros?
(cento e trinta e dois):
"Tais contra Inês os brutos matadores
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que depois a fez Rainha;
As espadas banhando, e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.
CANTO IV
Vasco da Gama continua a narração da
história de Portugal. Explana os fatos que levaram à Batalha de
Albajurrota: em 1383,
el-rei D.
Fernando morreu sem um filho varão que herdasse a coroa. A
sua única filha era a infanta D.
Beatriz, casada com o rei D. João de Castela. A burguesia
mostrava-se insatisfeita com a regência da Rainha D.
Leonor Teles e do seu favorito, o
conde Andeiro e com a ordem da sucessão, já que com ela isso
significaria anexação de Portugal por Castela. O conde Andeiro
foi morto e o povo pediu ao mestre de Avis, filho bastardo de D.
Pedro I, de Portugal, que ficasse por regedor e defensor do
Reino (sete):
"Beatriz era a filha, que casada
Co'o Castelhano está, que o Reino pede,
Por filha de Fernando reputada,
Se a corrompida fama lhe concede.
Com esta voz Castela alevantada,
Dizendo que esta filha ao pai sucede,
Suas forças ajunta para as guerras
De várias regiões e várias terras.
(quarenta e dois)
Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;
A multidão da gente que perece
Tem as flores da própria cor mudadas;
Já as costas dão e as vidas; já falece
O furor e sobejam as lançadas;
Já de Castela o Rei desbaratado
Se vê, e de seu propósito mudado.
A aliteração em /r/, /t/ e /s/ e as
rimas nasais, lembram os ruídos dos combates (trinta e um):
"Já pelo espesso ar os estridentes
Farpões, setas e vários tiros voam;
Debaixo dos pés duros dos ardentes
Cavalos treme a terra, os vales soam;
Espedaçam-se as lanças; e as frequentes
Quedas co'as duras armas, tudo atroam;
Recrescem os amigos sobre a pouca
Gente do fero Nuno, que os apouca.
Vasco da Gama também narra ao rei de Melinde o sonho de D. Manuel, quando dois anciãos falam das conquistas portugueses no Oriente. Esses anciãos representavam os rios Ganges e Indo, dessa forma o rei português é motivado para preparar uma expedição ao Oriente (sessenta e oito):
"Estando já deitado no áureo leito,
Onde imaginações mais certas são?
Revolvendo contino no conceito
Seu ofício e sangue a obrigação,
Os olhos lhe ocupou o sono aceito,
Sem lhe desocupar o coração;
Porque, tanto que lasso se adormece,
Morfeu em várias formas lhe aparece.
(setenta e quatro):
— "Eu sou o ilustre Ganges, que na
terra
Celeste tenho o berço verdadeiro;
Estoutro é o Indo Rei que, nesta serra
Que vês, seu nascimento tem primeiro.
Custar-te-emos contudo dura guerra;
Mas insistindo tu, por derradeiro,
Com não vistas vitórias, sem receio,
A quantas gentes vês, porás o freio."—
Há neste canto a famosa passagem do Velho de Restelo que prega o desprezo por valores vãos como a glória e a fama (noventa e quatro):
"Mas um velho d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
(noventa e cinco)
—"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
CANTO V
São descritas passagens da viagem, quando se descrevem fenômenos naturais como o fogo-de-santelmo (dezoito):
"Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e coisa certo de alto espanto,
Ver as nuvens do mar com largo cano
Sorver as altas águas do Oceano.
Neste canto há a passagem do gigante
Adamastor, personificação do Cabo das Tormentas (trinta e oito):
"Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo o negro mar, de longe brada
Como se desse em vão nalgum rochedo.
— "Ó Potestade, disse, sublimada!
Que ameaço divino, ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?" —
(trinta e nove)
"Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura,
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
Partida de Melinde (dois):
Com jogos, danças e outras alegrias,
A segundo a polícia Melindana,
Com usadas e ledas pescarias,
Com que a Lageia Antônio alegra e engana
Este famoso Rei, todos os dias,
Festeja a companhia Lusitana,
Com banquetes, manjares desusados,
Com frutas, aves, carnes e pescados.
Baco, não contente com o avanço português, desce à profundidade do mar em busca da ajuda de Netuno para juntos destruírem a frota portuguesa (oito):
No mais interno fundo das profundas
Cavernas altas, onde o mar se esconde,
Lá donde as ondas saem furibundas,
Quando às iras do vento o mar responde,
Netuno mora, e moram as jocundas
Nereidas, e outros Deuses do mar, onde
As águas campo deixam às cidades,
Que habitam estas úmidas deidades;
Violenta tempestade acomete aos
portugueses (setenta e quatro):
Os ventos eram tais, que não puderam
Mostrar mais força do ímpeto cruel,
Se para derribar então vieram
A fortíssima torre de Babel.
Nos altíssimos mares, que cresceram,
A pequena grandura dum batel
Mostra a possante nau, que move espanto,
Vendo que se sustém nas ondas tanto.
Vênus intervém novamente, enviando suas
ninfas para seduzir os ventos raivosos (oitenta e sete):
Grinaldas manda pôr de várias cores
Sobre cabelo; louros à porfia.
Quem não dirá que nascem roxas flores
Sobre ouro natural, que Amor enfia?
Abrandar determina, por amores,
Dos ventos a nojosa companhia,
Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas,
Que mais formosas vinham que as estrelas.
Chegada a Calicute (um):
Já se viam chegados junto à terra,
Que desejada já de tantos fora,
Que entre as correntes Indicas se encerra,
E o Ganges, que no céu terreno mora.
Ora, sus, gente forte, que na guerra
Quereis levar a palma vencedora,
Já sois chegados, já tendes diante
A terra de riquezas abundante.
Vasco da Gama estabelece contatos com as autoridades indianas: com o Samorim, imperador, e Catual, governador de Calicute (vinte e dois), por meio de Monçaide:
Da terra os naturais lhe chamam Gate,
Do pé do qual pequena quantidade
Se estende uma fralda estreita, que combate
Do mar a natural ferocidade.
Aqui de outras cidades, sem debate,
Calecu tem a ilustre dignidade
De cabeça de Império rica e bela:
Samorim se intitula o senhor dela.
(quarenta e quatro):
Na praia um regedor do Reino estava,
Que na sua língua Catual se chama,
Rodeado de Naires, que esperava
Com desusada festa o nobre Gama.
Já na terra, nos braços o levava,
E num portátil leito uma rica cama
Lhe oferece, em que vá, costume usado,
Que nos ombros dos homens é levado.
CANTO VIII
Baco aparece a um sacerdote muçulmano e instiga-lhe contra os portugueses. Vasco da Gama é traído por Catual, que possuía interesses com os muçulmanos (oitenta e um):
Era este Catual um dos que estavam
Corruptos pela Maumetana gente,
O principal por quem se governavam
As cidades do Samorim potente.
Dele somente os Mouros esperavam
Efeito a seus enganos torpemente.
Ele, que no conceito vil conspira,
De suas esperanças não delira
CANTO IX
Catual e seus
aliados retardam a partida de Vasco da Gama, esperando uma
armada proveniente de Meca que destruiria os navios portugueses
(um):
Tiveram longamente na cidade,
Sem vender-se, a fazenda os dois feitores
Que os infiéis, por manha e falsidade,
Fazem que não lha comprem mercadores;
Que todo seu propósito e vontade
Era deter ali os descobridores
Da Índia tanto tempo, que viessem
De Meca as naus, que as suas desfizessem.
Os portuguesas deixam a Índia, levando provas de que a aviam alcançado, alguns prisioneiros e várias mercadorias (quatorze):
Leva alguns Malabares, que tomou
Por força, dos que o Samorim mandara
Quando os presos feitores lhe tornou;
Leva pimenta ardente, que comprara;
A seca flor de Banda não ficou,
A noz, e o negro cravo, que faz clara
A nova ilha Maluco, com a canela,
Com que Ceilão é rica, ilustre e bela.
Levam também a Monçaide, que se converterá ao cristianismo (quinze):
Isto tudo lhe houvera a diligência
De Monçaide fiel, que também leva,
Que, inspirado de angélica influência,
Quer no livro de Cristo que se escreva.
Ó ditoso Africano, que a clemência
Divina assim tirou de escura treva,
E tão longe da pátria achou maneira
Para subir à pátria verdadeira!
Vênus recompensa os portugueses ofertando-lhes repouso na Ilha dos Amores, paraíso dedicado ao prazer, onde ninfas os aguardavam (setenta e dois):
Outros, por outra parte, vão topar
Com as Deusas despidas, que se lavam:
Elas começam súbito a gritar,
Como que assalto tal não esperavam.
Umas, fingindo menos estimar
A vergonha que a força, se lançavam
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que às mãos cobiçosas vão negando.
(setenta e três)
Outra, como acudindo mais depressa
A vergonha da Deusa caçadora,
Esconde o corpo n'água; outra se apressa
Por tomar os vestidos, que tem fora.
Tal dos mancebos há, que se arremessa,
Vestido assim e calçado (que, co'a mora
De se despir, há medo que ainda tarde)
A matar na água o fogo que nele arde.
(oitenta e três)
Ó que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã, e na sesta,
Que Vênus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.
Tétis e as ninfas oferecem um
banquete aos navegantes. A deusa mostra a Vasco da Gama
uma miniatura do Universo (Máquina do Mundo) (oitenta):
«Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfícia tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.
O poema se encerra com um tom pessimista
do narrador (cento e quarenta e cinco):
Nô mais,
Musa, nô mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dua austera, apagada e vil tristeza.