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Divisão de sua obra
Convencionou-se dividir a obra de Machado de
Assis em duas fases: uma chamada – de forma imprópria – de romântica
e a segunda fase, a da maturidade, ou realista. Dizemos que a
primeira é impropriamente chamada de romântica, pois já é possível
observar muito do Machado de Assis maduro, quando vemos uma
abordagem psicológica das personagens, a questão do interesse
em meio às ações humanas, o humor reflexivo (e que leva à reflexão)
e a concisão. Tais características não são encontradas nos romances
românticos, salvo algumas incursões isoladas como uma certa
abordagem psicológica em Senhora de José de Alencar, por
exemplo.
Divisão das obras do autor:
No entanto, não se pode, simplesmente,
enquadrar Machado de Assis dentro desta ou daquela escola literária,
visto que o autor conseguiu extrapolar qualquer paradigma. Só para
exemplificar, tomemos os pais do Realismo e do Naturalismo,
Flaubert e Zola. Para o autor de Madame Bovary, o romance
deveria narrar-se a si mesmo, dessa forma há uma supressão do
narrador, que se esmaeceria durante a narrativa; para o de
Thérèse Raquin, a realidade deveria ser
explorada em seus mínimos detalhes. Machado, por sua vez, vai além
disso, cultivando o incompleto, o elíptico, o fragmentário; intervém
na narrativa para conversar com seu leitor ora para filosofar, ora
para comentar o romance.
Verificam-se, no conjunto de sua obra,
elementos
a)
clássicos: concisão, equilíbrio, universalismo;
b)
românticos: narrativas convencionais;
c)
realistas: crítica dos valores sociais e morais,
objetividade;
d)
impressionistas: recriação do passado por meio de
flashs da memória.
É possível, inclusive, encontrar em Machado de
Assis uma antecipação da própria estética moderna com sua estrutura
fragmentária, a não linearidade, o gosto pelo elíptico, a
metalinguagem, a não-conclusão, o que permite várias leituras e
interpretações.
Características do estilo Machado de Assis:
Dom Casmurro
Publicado em
Órfão de pai, criado com desvelo pela mãe (D.
Glória), protegido do mundo pelo círculo doméstico e familiar – tia
Justina (viúva), tio Cosme (advogado), José Dias (agregado) –, é
destinado à vida sacerdotal, em cumprimento a uma antiga promessa
que fizera sua mãe caso tivesse um segundo filho, já que o primeiro
morrera ao nascer.
A proximidade, a convivência e a idade haviam
feito com que os dois vizinhos e amigos criassem afeição um pelo
outro. D. Glória, ao saber disto, fica alarmada e decide apressar o
cumprimento da promessa. Bentinho pede ajuda a José Dias para
impedir que D. Glória cumprisse sua decisão. Apesar de sofrer com a
separação, a mãe envia o filho para o seminário.
No seminário, Bentinho conhece Ezequiel de
Souza Escobar e tornam-se amigos e confidentes. Capitu, por sua vez,
começara a freqüentar, assiduamente, a casa de D.Glória, começando
uma afeição recíproca entre as duas
José Dias sugere a D. Glória que adotasse algum
órfão e lhe custeasse os estudos, já que prometera a Deus dar-lhe um
sacerdote, mas não este tivesse de ser necessariamente seu filho.
Bento deixa o seminário.
Bentinho forma-se em Direito e casa-se com
Capitu. Além disso, estreita a sua amizade com Escobar, que acabara
se casando com Sancha, amiga de Capitu. O escritório de advogacia
progride e a felicidade do casal seria completa não fosse a demora
em nascer um filho. Isto faz com que ambos sintam inveja de Escobar
e Sancha, que tinham tido uma filha, Anos mais tarde, do casamento
de Bentinho e Capitu nasce Ezequiel.
Escobar, que gostava de nadar, morre e, durante
seu enterro, Bentinho julga estranha a forma como Capitu contempla o
cadáver. A partir daí, os ciúmes vão aumentando e precipita-se a
crise. À medida que cresce, Ezequiel se torna cada vez mais parecido
com Escobar. Bentinho, cego de ciúme, chega a planejar o assassinato
da esposa e do filho, seguido pelo seu suicídio, mas não tem coragem.
Capitu viaja com o filho para a Europa, onde
morre anos depois. Ezequiel, homem formado, volta ao Brasil para
visitar o pai. Este, simplesmente, constata a semelhança entre e
antigo colega de seminário. Ezequiel parte para uma viagem de
estudos científicos no Oriente Médio, já que era apaixonado da
arqueologia, mas onze meses depois morre de uma febre tifoide em
Jerusalém, onde é enterrado.
Bento isola-se e procura atar as duas pontas
da vida, e restaurar na velhice a adolescência.
Análise da obra Dom Casmurro
Quando o narrador Bentinho se propõe a atar
as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência,
revela-nos que o memorialista do Engenho Novo buscará, simplesmente,
fazer uma autobiografia sua, utilizando inclusive para essa
concretização a reprodução do ambiente de sua infância e juventude,
representada na casa de Matacavalos. No entanto, logo veremos que
toda essa representação não passará de um expediente que revelará um
quadro de ciúme doentio, beirando mesmo a uma psicopatologia. Isso
fica claro quando se propõe a nos demonstrar sua lisura, enquanto
homem de bem, membro de uma classe social dominadora em uma
sociedade patriarcal. Para isso, empregará todos os meios narrativos
de que dispõe para alijar-se de seus complexos que o levaram à
infelicidade em sua vida pessoal, cujo aspecto externo mais
preeminente foi a destruição de seu casamento.
Podemos dizer que as raízes de seu mal
remonta-se a sua infância em Matacavalos, mais especificamente a
segunda gestação de D. Glória, sua mãe, que, ao perder o primeiro
filho, desespera-se e investe tudo para que o segundo rebento
vingasse e, para isso, vale-se dos céus: promete entregar o filho ao
sacerdócio se o mesmo fosse um varão.
(...) Minha mãe era temente a Deus; sabes disto, e das suas
práticas religiosas, e da fé pura que as animava. Nem ignoras que a
minha carreira eclesiástica era objeto de promessa feita quando fui
concebido. Tudo está contado oportunamente. Outrossim, sabes que,
para o fim de apertar o vínculo moral da obrigação, confiou os seus
projetos e motivos a parentes e familiares. A promessa, feita com
fervor, aceita com misericórdia, foi guardada por ela, com alegria,
no mais íntimo do coração. Penso que lhe senti o sabor da felicidade
no leite que me deu a mamar. Meu pai, se vivesse, é possível que
alterasse os planos, e, como tinha a vocação da política, é provável
que me encaminhasse somente à política, embora os dois ofícios não
fossem nem sejam inconciliáveis, e mais de um padre entre na luta
dos partidos e no governo dos homens. Mas meu pai morrera sem saber
nada, e ela ficou diante do contrato, como única devedora. (Assis,
Machado. D. Casmurro. São Paulo, Ática, 1995, p. 113)
O menino torna-se motivo de temores e desejos
antes mesmo de nascer. Ainda em sua infância, por volta dos três
anos, falece o pai. Bento perde, dessa forma, a representação da
figura paterna, fundamental na formação, no desenvolvimento e
construção moral, social, emocional e psicológica da criança. Isso
pode trazer algumas implicações: ou a criança torna-se
aversiva às ordens dadas por representantes femininos, ou leva-a a
ver na figura materna algo além de seu paradigma, configurando-se
inclusive uma situação edipiana, já que é a figura do pai que
quebrará a simbiose mãe-bebê.
Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe
nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que
o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo na igreja.
Talvez esperasse uma menina. Não disse nada a meu pai, nem antes,
nem depois de me dar à luz; contava fazê-lo quando eu entrasse para
a escola, mas enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o terror de
separar-se de mim; mas era tão devota, tão temente a Deus, que
buscou testemunhas da obrigação, confiando a promessa a parentes e
familiares. Unicamente, para que nos separássemos o mais tarde
possível, fez-me aprender em casa primeiras letras, latim e doutrina,
por aquele padre Cabral, velho amigo do tio Cosme, que ia lá jogar
às noites. (op. cit. pp. 25-26)
Para piorar ainda mais a situação de nosso
protagonista-narrador, havia naquele ambiente doméstico um ambiente
propício para o ócio, devido ao grande número de escravos que
orbitavam em torno do futuro senhor.
Estávamos na horta da minha casa, e o preto andava em serviço;
chegou-se a nós e esperou.
— É casado, disse eu para Escobar. Maria onde está?
— Está socando milho, sim, senhor.
— Você ainda se lembra da roça, Tomás?
— Alembra, sim, senhor.
— Bem, vá-se embora.
Mostrei outro, mais outro, e ainda outro, este Pedro, aquele
José, aquele outro Damião...
— Todas as letras do alfabeto, interrompeu Escobar.
Com efeito, eram diferentes letras, e só então reparei nisto;
apontei ainda outros escravos, alguns com os mesmos nomes,
distinguindo-se por um apelido, ou da pessoa, como João Fulo, Maria
Gorda, ou de nação como Pedro Benguela, Antônio Moçambique...
— E estão todos aqui em casa? perguntou ele.
— Não, alguns andam ganhando na rua, outros estão alugados.
Não era possível ter todos
Bentinho, portanto, crescera sozinho numa casa
cercada de adultos, muitos dos quais recalcados. Torna-se, dessa
forma, um menino introvertido e sonhador, cujos devaneios misturavam-se
com a realidade.
Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de
Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os
passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche
imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma idéia
fantástica, a idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e
pedir-lhe a intervenção. Não confiaria esta idéia a Capitu. "Sua
Majestade pedindo, mamãe cede", pensei comigo.
Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por
dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com
lágrimas. E logo me achei em casa, à esperar, até que ouvi os
batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador! é o Imperador!
toda a gente chegava às janelas para vê-lo passar, mas não passava,
o coche parava à nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava.
Grande alvoroço na vizinhança: "O Imperador entrou em casa de D.
Glória! Que será? Que não será?" A nossa família saía a recebê-lo;
minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o Imperador,
todo risonho, sem entrar na sala ou entrando, — não me lembra bem,
os sonhos são muita vez confusos, — pedia a minha mãe que me não
fizesse padre, — e ela, lisonjeada e obediente, prometia que não. (op.
cit. pp. 48-49)
Há, de forma semelhante, uma inconstância nos
humores do menino de Matacavalos, reflexo de seus devaneios e de sua
imaturidade frente a seus sentimentos. Estes oscilam entre a alegria
histérica e um tristeza profunda, mas sem aparente – para aqueles
que o observam – razão.
(...) O vigário confessou a doente, deu-lhe a comunhão e os
santos óleos. O pranto da moça redobrou tanto que senti os meus
olhos molhados e fugi. Vim para perto de uma janela. Pobre criatura!
A dor era comunicativa em si mesma; complicada da lembrança de minha
mãe, doeu-me mais, e, quando enfim pensei em Capitu, senti um ímpeto
de soluçar também, enfiei pelo corredor, e ouvi alguém dizer-me:
— Não chore assim!
A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginação, assim como
lhe atribuíra lágrimas, há pouco, assim lhe encheu a boca de riso
agora; vi-a escrever no muro, falar-me, andar à volta, com os braços
no ar; ouvi distintamente o meu nome, de uma doçura que me embriagou,
e a voz era dela. As tochas acesas, tão lúgubres na ocasião, tinham-me
ares de um lustre nupcial... Que era lustre nupcial? Não sei; era
alguma coisa contrária à morte, e não vejo outra mais que bodas.
Esta nova sensação me dominou tanto que José Dias veio a mim, e me
disse ao ouvido, em voz baixa:
— Não ria assim!
Fiquei sério depressa. Era o momento
da saída.(...) (op. cit. pp. 51-52)
Por estar centrado em um mundo infantil,
exteriorizado não só pela fecundidade de suas fantasias, as quais
mesclavam com a realidade, o despertar de sua sexualidade foi tardio.
Essa lenta descoberta, faz com o narrador apresente-se menos
capaz, inclusive, que a vizinha. Diminui-se, vê sua inferioridade,
apela para ela.
Capitu quis que lhe repetisse as respostas
todas do agregado, as alterações do gesto e até a pirueta, que
apenas lhe contara. Pedia o som das palavras. Era minuciosa e
atenta; a narração e o diálogo, tudo parecia remoer consigo. Também
se pode dizer que conferia, rotulava e pregava na memória a minha
exposição. Esta imagem é porventura melhor que a outra, mas a ótima
delas é nenhuma. Capitu era Capitu, isto é, uma criatura muito
particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse,
aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na
alma do leitor, à força de repetição. (op. cit. p. 52)
O amalgamento de todos esses sentimentos
– a inconstância em seu humor, a exteriorização de seus devaneios,
sua imaturidade frente a seus sentimentos, a timidez, a constante
oscilação entre a alegria histérica e um tristeza profunda –
servirão de suporte para o sentimento síntese da obra: o ciúme.
Este será expresso em todo o decorrer da obra
ora por fatos, aparentemente, insignificantes, ora por meio de fatos
marcantes, demonstrando a crescente e constante paranóia do
narrador. Essa já lhe era latente, é possível discenir isso ao
vermos o liame entre imaginação, fantasia, quando
sua crença e certeza torna-se vagas e imprecisas e aquilo que eram
dúvidas podem transformar-se em idéias supervalorizadas ou
delirantes.
a)
Quando na visita de José Dias ao
seminário:
— Capitu como vai?
(...)
— Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo,
enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com ela...
Estou que empalideci; pelo menos, senti
correr um frio pelo corpo todo. A notícia de que ela vivia alegre,
quando eu chorava todas as noites, produziu-me aquele efeito,
acompanhado de um bater de coração, tão violento, que ainda agora
cuido ouvi-lo. Há alguma exageração nisto; mas o discurso humano é
assim mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas,
que se compensam, ajustando-se. Por outro lado, se entendermos que a
audiência aqui não é das orelhas, senão da memória, chegaremos à
exata verdade. A minha memória ouve ainda agora as pancadas do
coração naquele instante. (op. cit. pp. 93-94)
b)
Devido ao dandy sob a janela de Capitu:
Escapei ao agregado, escapei a minha mãe não indo ao quarto
dela, mas não escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei
atrás de mim. Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me à cama, e
rolava comigo, e chorava, e abafava os soluços com a ponta do lençol.
Jurei não ir ver Capitu aquela tarde, nem nunca mais, e fazer-me
padre de uma vez. Via-me já ordenado, diante dela, que choraria de
arrependimento e me pediria perdão, mas eu, frio e sereno, não teria
mais que desprezo, muito desprezo; voltava-lhe as costas.
Chamava-lhe perversa. Duas vezes dei por mim mordendo os dentes,
como se a tivesse entre eles.
Da cama ouvi a voz dela, que viera passar o
resto da tarde com minha mãe, e naturalmente comigo, como das outras
vezes; mas, por maior que fosse o abalo que me deu, não me fez sair
do quarto. Capitu ria alto, falava alto, como se me avisasse; eu
continuava surdo, a sós comigo e o meu desprezo. A vontade que me
dava era cravar-lhe as unhas no pescoço, enterrá-las bem, até ver-lhe
sair a vida com o sangue... (op. cit. p. 109)
c) Durante os
bailes:
(...) Na Glória era uma das nossas recreações; também cantava,
mas pouco e raro, por não ter voz; um dia chegou a entender que era
melhor não cantar nada e cumpriu o alvitre. De dançar gostava, e
enfeitava-se com amor quando ia a um baile; os braços é que... Os
braços merecem um período.
Eram belos, e na primeira noite que os levou
nus a um baile, não creio que houvesse iguais na cidade, nem os seus,
leitora, que eram então de menina, se eram nascidos, mas
provavelmente estariam ainda no mármore, donde vieram, ou nas mãos
do divino escultor. Eram os mais belos da noite, a ponto que me
encheram de desvanecimento. Conversava mal com as outras pessoas, só
para vê-los, por mais que eles se entrelaçassem aos das casacas
alheias. Já não foi assim no segundo baile; nesse, quando vi que os
homens não se fartavam de olhar para eles, de os buscar, quase de os
pedir, e que roçavam por eles as mangas pretas, fiquei vexado e
aborrecido. Ao terceiro não fui, e aqui tive o apoio de Escobar, a
quem confiei candidamente os meus tédios; concordou logo comigo.
(op. cit. pp. 140-141)
d)
Durante o enterro de Escobar:
Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis
despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou a
todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu,
amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra,
queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu
olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente
fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e
caladas...
As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as
dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que
estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la;
mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os
olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto
nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá
fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã. (op.
cit. pp. 160-161)
Um simples olhar selará toda a história de uma tentativa de
felicidade do narrador. Não temos diante de nós, no entanto,
um mero olhar mas um de ressaca. Não havia mais dúvidas da
infidelidade da mulher, pois a prova final – em sua visão paranóica
– despontou-se ali no velório de seu melhor amigo, também ele
tragado pela ressaca.
— O mar amanhã está de desafiar a gente, disse-me a voz de
Escobar, ao pé de mim.
— Você entra no mar amanhã?
— Tenho entrado com mares maiores, muito
maiores. Você não imagina o que é um bom mar em hora bravia. É
preciso nadar bem, como eu, e ter estes pulmões, disse ele batendo
no peito, e estes braços; apalpa. (op. cit. p. 157)
(...)
Ouvia-se o mar forte, — como já se ouvia de
casa, — a ressaca era grande e, a distância, viam-se crescer as
ondas. Capitu e prima Justina, que iam adiante, detiveram-se numa
das voltas da praia, e fomos conversando os quatro; mas eu
conversava mal. Não havia meio de esquecer inteiramente a mão de
Sancha nem os olhos que trocamos. (op. cit. pp. 157-158)
A partir desse momento, sua vida e de sua
família viram um inferno: ignora a mulher, sente repulsa pelo filho.
A ideia de suicídio faz-se presente a todo momento, chega mesmo a
comprar veneno e a escrever cartas de despedida:
Cheguei a casa, abri a porta devagarinho,
subi pé ante pé, e meti-me no gabinete; iam dar seis horas. Tirei o
veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi ainda uma
carta, a última, dirigida a Capitu. Nenhuma das outras era para ela;
senti necessidade de lhe dizer uma palavra em que lhe ficasse o
remorso da minha morte. Escrevi dois textos. O primeiro queimei-o
por ser longo e difuso. O segundo continha só o necessário, claro e
breve. Não lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas havidas, nem
alegria alguma; falava-lhe só de Escobar e da necessidade de morrer.
(op. cit. p. 171)
Ao assitir a Otelo enxerga-se no mesmo e
vê que não ele é que tinha de morrer, mas Capitu. Faz, também ele,
de seus momentos uma peça de teatro em que se torna ator, um mero
coadjuvante que tem de representar papéis que não o seu próprio:
O meu plano foi esperar o café, dissolver
nele a droga e ingeri-la. Até lá, não tendo esquecido de todo a
minha história romana, lembrou-me que Catão, antes de se matar, leu
e releu um livro de Platão. Não tinha Platão comigo; mas um tomo
truncado de Plutarco, em que era narrada a vida do célebre romano,
bastou-me a ocupar aquele pouco tempo, e, para em tudo imitá-lo,
estirei-me no canapé. Nem era só imitá-lo nisso; tinha necessidade
de incutir em mim a coragem dele, assim como ele precisara dos
sentimentos do filósofo, para intrepidamente morrer. (op.
cit. p. 172)
Mas, diante de seus devaneios e inconstância,
eis que surge a figura do filho diante de si, o fruto do pecado de
sua mulher e de seu melhor amigo, Ezequiel. Ele é que deveria
perecer:
Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que
quase a entornei, mas disposto a fazê-la cair pela goela abaixo,
caso o sabor lhe repugnasse, ou a temperatura, porque o café estava
frio... Mas não sei que senti que me fez recuar. Pus a xícara em
cima da mesa, e dei por mim a beijar doidamente a cabeça do menino.
(op. cit. p. 173)
Apesar de não ter-lhe dado o veneno mortal,
deu-lhe um bem pior: o moral, o da destruição, o mesmo amargor que
tivera de carregar durante toda a vida, quando seu filho na alegria
dos beijos recebidos exclama pelo pai:
— Papai! papai! exclamava Ezequiel.
— Não, não, eu não sou teu pai! (op. cit. p. 173)
Capitu ouvira a conversa entre os dois.
Estupefata diante dessa acusação, nada mais lhe restaria a não ser a
separação. Mas antes expõe ao marido a que ponto chega a loucura de
seu ciúme:
— Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!
(op. cit. p. 175)
Resta ainda ao narrador manter as aparências
diante da sociedade, por isso viaja com a mulher e o filho para a
Suiça, porém os deixa ali. O tempo passa e mal responde as cartas
enviadas. Capitu foi apagada de sua vida, mas não o ciúme que sentia
por ela, pois esse se avivou com a visita do filho que viera da
Europa.
É nesse momento que cita a morte da mulher, mas
apenas dedicou-lhe apenas algumas linhas no romance a esse respeito.
O mesmo se dá com Ezequiel que acaba morrendo na Palestina.
Resta a pergunta: diante do abordado, vale a
pena insistir em perguntar se Capitu traiu ou não a Bentinho?
O fio do machado está afiado, por isso o menino
nascido no Morro do Livramento conseguiu como poucos quebrar certos
paradigmas, revelar um retrato moral de sua época, num trabalho de
perfeição estética, empregado as palavras – ou sua ausência – de
maneira magistral não empregando o lugar-comum, mas mostrando que
também era possível fazer literatura refinada num país periférico
como o Brasil.
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