Na festa de São Lourenço
LOCAL:
Aldeia de S. Lourenço, hoje parte de Niterói.
DATA:
10 de agosto de 1587.
CENÁRIOS:
Porto da aldeia e adro da capela de S. Lourenço.
PERSONAGENS:
Guaixará,chefe dos diabos(Gua.)
Aimbirê, Saravaia: seus criados (Aim., Sar.)
Tataurana, Urubu, Jaguaraçu, Caborê: companheiros destes. (Tat.. Ur., Jag., Cab.)
Velha, que hospeda Guaixará (Vel.)
Décio, imperador romano (Déc.)
Valeriano, seu colega (Val.)
S. Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro (Seb.)
S. Lourenço, padroeiro da aldeia (Lour.)
Anjo da Guarda da aldeia, com asas de canindé (Anj.)
Cativos, que acompanham os diabos.
TEMA:
“Após a cena
do martírio de S.
Lourenço, Guaixará
chama Aimbirê e
Saravaia para o
ajudarem a perverter
a aldeia. S.
Lourenço a defende,
S. Sebastião os
prende.
Um anjo manda-lhes afogar
Décio e Valeriano;
os quatro
companheiros acorrem
para auxiliar os
demônios. Os
imperadores recordam
façanhas quando
Aimbirê se aproxima.
O calor que se
desprende dele
abrasa os
imperadores, que
suplicam a morte.
O anjo, o
Amor e o Temor de
Deus aconselham
caridade, contrição
e confiança em S.
Lourenço. Faz-se o
enterro do Santo.
ATO I:
Esta se cantou, estando
S. Lourenço nas grelhas
Por Jesus, meu salvador,
morto por minha maldade,
asso-me sobre esta grade,
com fogo do seu amor.
Bom Jesus, quando te vejo,
em a cruz, por mim chagado,
eu, por ti, vivo queimado,
mil vezes morrer desejo.
Pois teu sangue redentor
lavou-me toda maldade,
que eu arda sobre esta grade,
com fogo do teu amor!
O fogo do forte amor,
ó meu Deus, com que me amas,
mais me queimas do que as chamas
e brasas com seu calor.
Ato II:
No 2º ato entram três
diabos, que querem
destruir a aldeia com
pecados, aos quais
resistem S. Lourenço e
S. Sebastião e o Anjo da
Guarda, livrando a
aldeia e prendendo os
diabos, cujos nomes são:
Guaixará, que é o rei;
Aimbirê e Saraiava, seus
criados.
Gua.:
Molesta-me a boa gente,
fazendo-me crua guerra;
o povo está diferente:
quem o mudou de repente,
para danar minha terra?
Só eu sou
o que nesta aldeia
como seu guarda vivendo.
Às minhas leis eu a rendo
e daqui longe me vou
outras aldeias revendo.
Como eu, no mundo, quem há?
eu sou bem conceituado,
eu sou o diabão assado
que se chama Guaixará,
em toda a terra afamado!
Agradável é meu modo:
não quero ao índio vencido,
não o quero destruído.
Remexer o povo todo
é somente o que eu envido.
É boa coisa beber,
até vomitar, cauim.
É isto o maior prazer,
isto só, vamos dizer
isto é glória, isto sim.
Pois só se deve estimar
moçacara beberrão.
Os capazes de esgotar
o cauim, guerreiros são,
sem se cansar
sempre anseiam por lutar.
É bom dançar, enfeitar-se
e tingir-se de vermelho;
de negro as pernas pintar-se,
fumar e todo emplumar-se,
e ser curandeiro velho.
Enraivar, andar matando
e comendo prisioneiros,
e viver se amancebando
e adultérios espiando,
não o deixem meus terreiros.
Para tal,
vivo ao lado do pessoal,
fazendo-me acreditar.
Os tais padres afinal
vêm agora me expulsar,
pregando a lei divinal.
Tenho fé
em meu ajudante, que é
meu mór colaborador,
queimado no mesmo ardor
o grande chefe Aimbirê,
dos índios pervertedor.
Senta-se numa cadeira e
vem uma velha chorá-lo,
e ele ajuda-a, como
fazem os índios, e ela,
depois de o chorar,
achando-se enganada,
diz:
Vel.:
Ó diabo intrometido!
enjoa-me seu chulé!
se vivesse meu marido,
meu pobre Piracaê,
lhe diria isso ao ouvido.
Fala com ele:
Irra, o mau!... Não beberá
hoje do que eu mastiguei;
tudo só eu beberei!
Quanto juntei, dias há,
irei bebê-lo, oh! Irei.
E foge.
Chama Guaixará a Aimbirê
e diz:
Gua.:
Mas onde está ele agora?
(aparece Aim.)
Aqui! Estavas dormindo?
Aim.:
Não! longe andava, lá fora:
pelas tabas fiz demora,
à nossa serra subindo.
Alegraram-se ao me ver,
me abraçaram e hospedaram
e o dia inteiro passaram
a dançar, folgar, beber,
e as leis de Deus ultrajaram.
Em suma fiquei contente;
e, ao ver a depravação,
tranquilizei-me: eles dão
aos vícios de toda a gente
abrigo no coração.
Gua.:
É por isso
que em teu grande feitiço
apoio minha esperança.
Vem cá! Os nomes avança
dos que enlaçaste no enguiço
e meteste nesta dança.
Aos ilhéus, bons caiçaras,
aos fiéis Maratauãos
meus sermões não foram vãos.
Todos os Paraibiquaras
puseram-se em minhas mãos.
Perdi alguns, é verdade,
que a Mangueá foram ter
com os padres da cidade.
Não gosto quando se evade
um tupi do meu poder.
Mas após,
para os que ficaram sós
esses Padres lhes mentiram.
Nada porém conseguiram:
fiz esquecer sua voz
e a minha todos ouviram.
Gua.:
E que meios aparelhas
que lá os tem enleiado?
Aim.:
Trouxe, aos Tapuias, de velhas
de Mangueá umas parelhas...
E assim fiquei descansado.
As velhas são más de fato:
fazendo suas magias
exaltam as fantasias,
lançam a Deus desacato,
e a mim enchem de honrarias.
Os Tapuias, por folgar,
não vieram à nossa feira.
Passaram a noite inteira
em feitiços e a dançar,
antes de ir para a fogueira.
Gua.:
Bem! Já basta!
Com sucessos desta casta,
tu me encheste de alegria.
Aim.:
Pois será de grã valia
a quem, como eu, arrasta
seus parentes à enxovia.
Vês tu os Tupinambás,
esses do Paraguaçú,
que com Deus não tinham paz?
Perdi-os todos, nem tu
rastro algum deles verás.
Infesto Moçupiroca,
Jequeí, Guatapitiba,
Niterói, o Paraíba,
Guajajó, Carijó-oca,
Pacucaia, Araçatiba.
Todos os Tamoios foram
jazer queimando no inferno.
Só alguns na aldeia moram
e agora firmes se escoram
no amor do seu Deus eterno.
Estes Temininós bravos
detestam as nossas leis.
Gua.:
Vem pois torná-los escravos:
que bebam, façam agravos,
blasfemem, como infiéis.
Vivam provocando brigas
e cometam mil pecados.
De seu Senhor afastados,
Vem, e nas nossas intrigas,
oh! Envolve estes malvados.
Aim.:
É bem difícil a alguém
Tentá-los: o seu guardião
Amedronta-me...
Gua.:
Pois quem?
Aim.:
São Lourenço, herói do bem,
Que vive na alta mansão.
Gua.:
Qual? O Lourenço queimado,
que em fogo, como nós, arde?
Aim.:
Esse!
Gua.:
Oh! Fica descansado!
será logo afugentado...
Não sou um Mair covarde!
Pois fui eu quem o queimou
e o assou ainda em vida.
Aim.:
Ele agora te revida:
de teus braços libertou
quantos teu amor convida.
Na luta foi seu amigo
Bastião, outrora flechado.
Gua.:
O que eu flechei? Oh! Comigo
me alegro, e remoçado
volte meu valor antigo!
Ambos logo fugirão,
logo ao me verem vir.
Aim.:
Não creio! Vencer-te-ão.
Gua.:
Confia em mim! Eles hão
de, com o medo, fugir.
Quem há no mundo como eu?
que ao próprio Deus desafia?
Aim.:
Por isso Deus te abateu
e no inferno te meteu
que te abrasa noite e dia.
Aim.:
Pois eu assisti outrora
à luta de Guaixará.
Quanta igara veio cá!
Ajudaste-os na má hora,
debandou tudo pra lá!
Pouco era o povo cristão;
mas nos barcos ateou
fogo São Sebastião,
e assustou-os desde então
ninguém na luta ficou.
Gua.:
De certo os cristãos de bem
tão rebeldes não seriam...
Os Temiminós porém
a lei de Deus não retém,
não amam, nem apreciam.
Vai e faze o pecador em
em nossos laços tombar.
Caia logo seu vigor
e deixando ao Criador
venha a nós confiar.
Aim.:
Vou tentar. Tempo virá
em que me obedecerão!
Gua.:
Vou à frente, espera cá!
enquanto eu luto por lá,
os índios te vêm à mão.
Aim.:
Não te afobes! ao chão rente
Deitemo-nos nestas tocas.
Nosso espia vá à frente
e primeiro bem atente
a todo interior das ocas!
(entra Saraiava)
Gua.:
Muito bem!
És capaz do que convém,
Saraiava, mau vigia?
Sar.:
É essa minha valia.
Olá! irá muito além
O Saraiava-alegria!
Sou o Saraiavaçu!
Que novidades ouvi?
Gua.:
Espero muito de ti:
que espie as ocas tu
e logo voltes aqui.
Eu hoje te vou deixar
aprisionar tais borregos.
Sar.:
Onde a ordem me mandar
irei; pois, em meu pensar,
sempre quis esses empregos.
Pois eu, Saraiava, à toa,
estes índios vou prender;
sua aliança vou romper...
Ir-me-ei nesta canoa.
Cauinar é meu prazer!
Gua.:
Eh! voa, corta pelo ar,
súbito!
Sar.:
Já voarei!
fica passeando com Aim.
e diz:
Guai.:
Contigo um giro darei.
Quando Saraiava voltar,
contigo os chãos destruirei.
Torna Saravaia e diz:
Aim.:
Danado... Voltou voando!
Gua.:
Não se demorou na raia...
Já chegaste, Saravaia?
Sar.:
Sim, honra-nos todo o bando,
está em festa toda arraia!
Goza, oh sim!
regorgitava o cauim:
igaçabas de grão porte
convidavam de tal sorte
que se esgotavam sem fim.
Gua.:
Estava forte?
Sar.:
Bem forte!
Para tal festa acorriam
os rapazes beberrões
que empestam os aldeões:
velhos, velhas, moças iam
servindo mais, mais porções.
Gua.:
Bem, basta! agora com jeito
vamos assaltar o bando:
eu o fogo à terra deito...
Vêem São Lourenço com
dois
Aim.:
Olha lá esse sujeito
que me está ameaçando!
Ai! O Lourenço queimado?
Sar.:
Sim, ele! E Bastião também.
Aim.:
E esse outro que está ao lado?
Sar.:
Será o Anjo encarregado
que esta aldeia em guarda tem?
Ai! eles me esmagarão!
É-me terrível mirá-los...
Gua.:
Sê forte, não fujas, não!
Vem, ataquemos então
para assim amedrontá-los.
Das mãs flechas escapar!
pois nos prostram destruídos.
Aim.:
Olha, vem-nos açoitar:
meus músculos vão ficar
de tremor endurecidos.
São
Lourenço fala a
Guaixará:
Lou.:
Quem és tu?
Gua.:
Guaixará, o cauçu,
sou o grande boicininga,
o jaguar da caatinga,
eu sou o andirá-guaçi,
canibal, demo que vinga.
E ele, é?
Aim.:
O grão tamoio Aimbirê,
sou jibóia, sou socó,
sucuriu taguató,
demônio-luz, mas sem fé,
tamanduá atirabebó!
Lou.:
Aqui, na minha mansão.
que buscais por essa via?
Gua.:
Amamos a indiaria!
queremos-lhe a sujeição,
e toda nossa porfia.
Ama-se sinceramente
o que é próprio da verdade...
Seb.:
Quem nalgum ponto ou idade
vos entregou essa gente
para vossa propriedade?
Deus Senhor,
com santidade e amor,
alma e corpo lhes formou.
Gua.:
Deus? talvez... mas deformou
seu viver de mau teor
sua alma que não se ornou
Uns sandeus!
repelem o amor de Deus
e se orgulham pela taba.
Aim.:
Regorgita a igaçaba:
as velhas tentam os seus
com cauim que não acaba.
A grande cabaça tolhe
a liberdade da mente;
em meio da dança quente,
nosso carinho os recolhe,
desprezando o Onipotente.
Lou.:
Será sua força pouca
para rezar cada dia,
ou perde-os soberba louca?
Aim.:
Isso! só está na boca
seu amor em que Deus confia.
É sim: pois intimamente
só lhe sabem resmungar
e a seu Deus desafiar:
“Terá Deus vista potente
para sempre me espiar?”
São Sebastião com
Saraiava
Seb.:
Há aqui alguma rata,
ou repugnante gambá?
És noite talvez ingrata
que as galinhas desbarata
e ao índio empobrecerá?
Sar.:
(De almas eu tenho tal fome
que esta noite não dormi...)
Gua.:
Saravai, cala-te aí!
Sar.:
Oh! Não lhe digas meu nome,
não me mate agora aqui!
Esconde-me dele agora,
e teu espia serei.
Gua.:
Calma! não te mostrarei;
cala-te e não saias fora,
logo mais te largarei.
Sar.:
Eu vou-me esconder ali:
inda bem que não me viu...
Seb.:
Eu vou flechar é a ti!
Arreda! vai-te daqui!
Gua.:
Deixa-o, pois não dormiu.
Seb.:
Ele não dormiu de fato,
para os índios perturbar.
Sar.: (É isso mesmo! É exato...)
Açoita-o Guaixará e diz:
Gua.:
Se não te escondes te bato...
ou queres ser seu manjar?
Sar.:
Ai de mim!
porque me bates assim?
pois estou bem escondido.
Aimbirê com São
Sebastião:
Aim.:
Já! Sai-te daqui corrido!
Tenho pressa, porque enfim
sou dos fiéis requerido.
Seb.:
Fiéis, quem?
Aim.:
Velhos e velhas também,
homens, moças, rapazes,
todos enfim os capazes,
aos quais meu poder retém,
com os quais eu faço pazes.
Cantarei a corrupção:
acreditarás em mim.
Seb.:
Inútil! mas ouço enfim...
Aim.:
Igaçabas sempre estão
a transbordar de cauim.
De tão ébria a turba acaba
se ferindo e engalfinhando:
Seb.:
Mas logo os vem censurando
o velho morubixaba,
que lhes fala incriminando.
Aim.:
Repreensão a tapejaras?...
O próprio dono da festa
chama os homens da floresta:
“Morubixás, moçacaras,
venham a mim!” ele o atesta.
Portanto os rapazes todos,
do próprio chefe ao convite,
dão folgas ao apetite
e agridem moças sem modos
Eis que aí tudo se admite.
Seb.:
Por isso já usa o bando
buscar os Acarajás,
que se vão aprisionando.
Aim.:
Estes gostam do desmando,
é vida que lhes apraz.
Seb.:
Uns aos outros certamente
provocam algumas vezes.
Aim.:
Não sei, mas freqüentemente
eu introduzo meus fregueses
a tudo que é indecente.
Gua.:
Espera! Eu vou te socorrer...
Essas velhas se injuriam
e se odeiam com prazer.
Não cessam de maldizer;
E ao maldizer maliciam
Pecam as desavergonhadas,
e tecendo mil intrigas,
com drogas do mato e figas,
cuidando de ser amadas,
fazem-se belas e amigas.
Esses rapazes são donos
em perseguir as mulheres:
buscam as de vis misteres
em as casas dos colonos
e fogem sem perceberes.
Oh! não teria fim isso
até ao sol no poente.
Pecadora é toda a gente.
Aim.:
Se não lhes faltasse o siso,
nos maldiriam de frente.
Lou.:
Mas existe a confissão,
remédio senhor da cura.
Os índios que enfermos são
com ela se curarão,
e a comunhão os segura.
Quando o pecado lhes pesa,
vão-se os índios confessar.
Dizem: “Quero melhorar...”
O Padre sobre eles reza
para ao seu Deus aplacar.
Gua.:
Suas faltas não avultam,
ao confessar malefícios,
mas usando de artifícios,
escravas moças ocultam
a grande de seus vícios.
Aim.:
Afastado,
“quando à morte for chegado,
diz o índio, expulsarei
todo o crime que ocultei”.
Gua.:
Ouve, oh! sim; pois com
cuidado
seus maus atos desfiei.
Lou.:
Com todo vosso ódio, sei
que procurais condená-los.
Deles não me afastarei,
mas a Deus suplicarei
para sempre auxiliá-los.
Eles em mim confiaram,
construindo esta capela;
velhos vícios extirparam,
por patrono me tomaram
que em firmá-los se desvela.
Gua.:
É inútil seu alento:
eu tos arrebatarei,
apesar do teu sustento.
Eu vôo como este vento,
com eles eu voarei!
Aimbirê,
voemos com nossa fé
a alegrar meus aldeões!
Eu ranjo... eis os meus chifões,
esta dentuça minha é,
minhas garras e dedões!
(coloca a aparelhagem)
Anj.:
Não espereis, como então,
turvar este povo ordeiro.
Cá estou como guardião
junto com Sebastião
e Lourenço o padroeiro.
Pobres de vós, alcateia,
que irritastes deus eterno,
desordenando esta aldeia.
Fala com os Santos:
Eia! Amarrai-os, eia!
Queimar-vos-á vosso inferno!
Os Santos prendem os
dois diabos
Gua.:
Oh basta!
Lou.:
Não! o teu furor me agasta:
deste provas de querer
a minha igreja abater...
São Sebastião ao
Aimbirê:
Seb.:
Preso, estes grilhões arrasta!
Grita! Uiva!...
Aim.:
Ai, que desprazer!
Presos estes dois, fala o Anjo ao Saraiava que ficou escondido:
Anj.:
Quem está aqui deitado?
Morcego, cuíca será?
ou larva de panamá?
Vamos, cururu minguado!
Sai pra fora, gambá!
Arrebenta!
vamos, peste fedorenta!
borá, miaritacaca,
seboí, tamurataca!
Sar.:
Ai! Morro de morte lenta!
Quem me desperta e me
atraca?
Anj.:
Quem és tu?
Sar.:
Sou Saraiava,
Inimigo do francês.
Anj.:
É só essa a tua laia?
Sar.:
Eu fui porco desta praia,
espião de pouco prez.
Anj.:
Por isso és tu um imundo
Que as almas dos índios
mancha
Borra que és, porco do mundo,
eu te meto no profundo...
Sar.:
Ai! que o fogo me desmancha...
Ovas de peixe tu queres?
A ti darei em resgate.
Ou farinha d’água ingeres?
Dinheiro talvez preferes?
Anj.:
Não ouvi teu disparate.
Certo, tudo isto escondeste!
certo de alguém o roubaste!
Em casa de quem pousaste,
antes que aqui te meteste?
E que mais coisas furtaste?
Sar.:
Não! só destas três me valho:
pois da casa de cristão
só trago o que tenho em mão,
e é fruto do meu trabalho...
Nada há mais em meu bolsão!
Têm mais os do meu caminho...
Eu, para comprar cauim,
dei aos índios, com quem vim,
pois queriam beber vinho,
tudo, dando a tudo fim.
Anj.:
Vem e teu roubo apresenta,
que a eles restituirei.
Sar.:
Oh! não que me embebedei...
(minha sogra rabugenta
bebe mais do que julguei!)
Perdoa, irmão, não me impeças:
tenho dores, adoeci!
De todas as minhas peças
darei algumas a ti,
para rachar suas cabeças.
Toma o nome dos malvados,
exalta tua grandeza!
Anj.:
Onde encontraste tal presa?
Sar.:
Entrei pelos descampados
e os apanhei de surpresa.
Anj.:
Serão filhos de índios, hem?
Sar.:
Talvez seja todo o bando:
em longa os atando,
pelo cachaço também,
eu os fui enfileirando...
Meti revoltas na mata,
Lacei mulheres sozinhas.
Em espreitas bem mansinhas,
não dormi, à sua cata:
são presas eternas minhas!
Anj.:
Desejaste em vão maldades.
Irás para o fogo ardente:
ficarás eternamente
a tramar malignidades...
Eis-te preso de repente!
Amarra-o o Anjo e diz:
Sar.:
Aimbirê!
Oi!
Sar.:
Livra-me, por mercê!
Este diabo me atou.
Aim.:
A mim também derrotou
Bastião, que me venceu e é
quem a prosa me tirou.
Ai! eu findo!
Guaixará, estás dormindo?
Tu não me queres vingar?
Gua.:
Que absurdo, esse gritar!
Lourenço, o queimado, é vindo
para me atar e queimar.
Anj.:
Que vossa terra maldita
no fogo para sempre arda!
Temos todos esta dita,
pela bondade infinita:
Estarei sempre de guarda!
Faz
uma prática aos
ouvintes:
Alegrai-vos,
filhos meus, e levantai-vos!
Para proteger-vos, eu
aqui estou; vim do céu.
Ao pé de mim ajuntai-vos:
dou-vos todo o auxílio meu!
Esta taba iluminando
ao vosso lado eu estou,
jamais daqui me afastando.
Pois de guardar este bando
o Senhor me encarregou.
Cada um de vós, do Senhor,
teve um anjo em proteção,
que vos dá todo o vigor
e ao diabo com seu furor
expulsa do coração.
Igualmente,
os servos do Onipotente:
São Lourenço virtuoso
calca o inferno furioso;
protegendo vossa gente,
a leva ao eterno gozo.
Também São Sebastião,
que foi soldado de guerra,
ao Tamoio forte então
derrotou de tal feição
que nem há mais sua terra.
Todas – Paranápucu
Jacutinga, Moroí,
Sariguéia, Guiriri,
Pindoba, Pariguaçu,
Curuçá, Miapeí,
Tapera Jabebiraci...
Morto ao defender seu lar
já não mais existe aí:
lado a lado os corpos vi
jazer no fundo do mar.
Seus bons franceses lhes dão
muito arcabuz, mas em vão.
Fizeram-lhes dano imenso
flexas de São Sebastião,
ao lado de São Lourenço.
Amam vossa alma, guardando-a,
compadecendo-se dela:
eternamente amparando-a,
já a tornam santa e bela,
de seus vícios extirpando-a
amarrarão o mau bando,
quando vier a tentar-vos;
não permitirão tocar-vos,
mas vossas almas amando,
por seus fiéis querem
tomar-vos
Já, enfim,
evitai o que é ruim:
desterrai a velha vida,
feio adultério, bebida,
mentira, briga, motim,
vil assassínio, ferida.
Amai vosso Criador,
a Jesus engrandecei,
cuja virtuosa lei
São Lourenço protetor
guardou para sua grei.
Homens maus o aprisionaram:
sofreu suportando o fogo,
com que eles vivo o
queimaram;
porém depois que o mataram,
teve paz e desafogo.
Procurai a sua estima,
amando o que vos mandei.
Confiando mais nele, sei
que guardará lá de cima
os que guardam sua lei.
Vinde, amados,
para Deus bem a seus lados!
Trazendo-o no coração,
ireis gozar na amplidão,
junto aos bem-aventurados,
em sua própria mansão!
Fala com os Santos, convidando-os a cantar, e com isto se despedem:
Um pouco agora cantemos!
Celebremos nossa vida!
Pois foram presos os demos
a façanha celebremos!
Saudemos sua saída!
Levam presos os diabos,
os quais na última
repetição da cantiga
choram.
Cantiga: pelo tom de “Quien tiene vida en el cielo”
Alegrem-se nossos filhos!
Libertou-os Deus eterno!
Guaixará vá para o
inferno!
Guaixará vá para o inferno!
Guaixará, Aimbiré, Saravaia
vão para o inferno!
Alegrem-se, em vida boa,
dos maus vícios dando cabo,
Não afastem Deus à toa
e repudiando ao diabo:
alegrem-se em paz tão boa!
Libertou-os Deus eterno!
Quaixará para o inferno!
Quaixará para o inferno!
Guaixará, Aimbiré, Saravaia
Vão para o inferno!
(retiram-se todos)
ATO III: NA FESTA DE S.
LOURENÇO
Depois de S. Lourenço
morto nas grelhas, o
Anjo fica em sua guarda
e chama os dois diabos,
Aimbirê e Saravaia, que
venham afogar Décio e
Valeriano, que ficarão
assentados em seus
tronos.
Anj.: Aimbirê,
Ergue-te! vem cá ao pé.
Apressa-te, vamos, voa!
Aim.: Pronto, pronto! em
hora boa!
(talvez
mais prisão me dê
este pássaro-pessoa).
Anj.: Para teu despojo
imenso
ficam os imperadores
que mataram São
Lourenço.
Queimem-se no fogo
intenso,
em pena de seus
horrores.
Aim.: Sim, com esses me
contento:
serão hoje meus cativos;
à força os levarei
vivos,
num prazer bem odiento
para os fogos sempre
ativos.
Anj.: Eia, depressa, a
afogá-los!
Que não vejam mais o
dia!
Eia, depressa, a
atirá-los
ao fogo de vossos valos!
Reuni a companhia!
Sar.: Pronto! Irei
executar vossa
lei,
reunir a minha laia.
Vem beber, ó Saravaial
Vamos, hoje fende
i as cabeças desta
arraia!
Há aqui muito cauim,
Jaguaruna, meu avô?
Eh! embriagar-me já vou!
Irra! Para este festim,
Já todo de negro estou.
É aquele um
guaitacá
ou filho de guaianá?
Um termiminó talvez...
Um banquete desta vez
Jacaréguaçu me dá.
Vê o anjo e espanta-se
dizendo:
Oh! que é aquilo a
brilhar,
azul como um conindé?
Parece arara de pé...
Aim.:
Eis dá ordens de afogar:
oh! um anjo de Deus é!
Sar.:
Vinde aqui, meus fortes
cabos,
Tamanduá, Tataurana!
Será que também me
engana?
Não confio em tais
diabos...
De esconder-me dá-me
gana.
Aim.:
Vem aqui!
Sar.:
Ai! Morde-me o marigui:
Já me ataca e vai
comendo.
Tenho medo, estou
tremendo!
Sou pequenino e senti
Que me estão já
desfazendo.
Aim.:
Os índio jamais entregam
seus filhos, mas os
desviam,
e a afogá-los se negam.
Sar.:
Tens razão: se não
confiam,
com mútuo engano se
cegam.
Aim.:
Para! só porque bebeste,
queres ser tão valentão?
Ó ambuá, moleirão!
Pobre de mim, que
quiseste
que vá contigo à prisão!
A quem vamos nós comer?
Aim.:
Inimigos de São
Lourenço.
Sar.:
Esses vis chefes que
venço?
Eu muitos nomes vou ter
muitos os nomes que
penso.
Muito bem! sua barriga
há de ser o meu quinhão.
Aim.:
Vou morder seu coração.
Sar.:
Comerá a taba amiga
e toda nossa região.
Chama quatro
companheiros que ajudem:
Tataurana,
traze tua muçurana!
Traze a ingapema, Urubu!
Tu também, Jaguaruçul
Caborê, à comezana
do inimigo corre tu!
Acodem todos quatro, com
suas armas e
dizem:
Tat.:
Eis a muçurana inteira!
Eu comerei o que é
braço,
Jaguaruçu o cachaço,
Urubu sua caveira,
Caborê o seu pernaço.
Uru.:
Cá estou!
Seus bofes e tripas vou
levá-los à velha aquela,
minha sogra: eis a
panela
para cozer, que
lhe dou.
Eu terei a vista nela.
Jag.:
Eis a ingapema listrada,
que quebra o crânio
real.
Comerei sua miolada:
sou guará, onça
malhada,
jaguaretê
canibal.
Cab.:
Andei por aqui outrora
destroçando mil
franceses,
indo-me glorioso embora.
Irei a teu lado agora
devorar estes fregueses.
Sar.:
Não notaram nossa via...
Agachai-vos! eu à frente
Irei como vosso espia:
prendamo-tos à porfia,
e não nos prenda essa
gente.
Vão todos agachados para
Décio, que está
praticando com
Valeriano:
Déc.:
Valeriano, meu amigo,
cumpriu-se o desejo meu:
pois nem arte de judeu
libetou do meu castigo
o servo do Galileu.
Nem Pompeu e nem Catão,
nem César, nem o
Africano,
nenhum grego nem troiano
puderam dar conclusão
a feito tão soberano.
Val.:
O remate, grão senhor,
desta tão grande façanha
foi mais que
vencer Espanha.
Nunca rei e imperador
logrou coisa tão
estranha.
(aponta a Aimbirê e seus
comps.)
Mas, senhor, é um revel
que ali vejo, tão armado
com espadas e cordel,
e com gente de tropel,
de que vem acompanhado?
Déc.:
É
nosso grão Deus e
amigo
Júpiter, sumo senhor,
que recebeu grão sabor
com o terrível castigo
e morte deste traidor.
E quer, por recompensar
as penas deste ladrão,
nosso império
acrescentar,
com sua potente mão,
pela terra e pelo mar.
Val.:
Mais temo eu que ali vem
a seus tormentos vingar,
e a nós outros
enforcar...
Oh! que feia cara tem!
Eu já começo a suar...
Déc.:
Enforcar?
Quem me pode a mim matar
ou mover meus
fundamentos?
Pois nem a fúria dos
ventos
nem a braveza do mar
nem todos os elementos.
Não temas que meu poder,
que meus deuses imortais
me quiseram conceder,
jamais se pode vencer,
pois não há forças
iguais.
De meu cetro imperial
tremem os reis e
tiranos.
Venço todos os humanos.
Quase posso ser igual
a meus deuses soberanos.
Val.:
Oh! que terrível figura!
Não posso mais aguardar,
que me sinto já queimar!
Vamo-nos, que é grão
loucura
tal encontro aqui
esperar.
Ai, ai! que grandes calores!
Já não tenho desafogo.
Déc.:
Ai! que terríficas dores!
Ai, que ferventes ardores,
que me abrasam como fogo!
Ó paixão!
Ai de mim! este é Plutão
que vem de seu
Aqueronte,
ardendo como tição,
a levar-nos de roldão
ao fogo de Flegetonte.
Oh coitado,
que me queimo! Esse
queimado
me queima com grão
furor.
Ó mofino imperador!
todo me vejo cercado
de penas e
de pavor,
que o diabo,
armado de cabo a rabo
com as fúrias infernais,
vem malhar os criminais.
Não sei como não acabo
com angústias tão
mortais.
Val.:
Ó Décio, cruel tirano,
já pagas e pagará
contigo Valeriano,
porque Lourenço, sem
dano
assado, nos assará.
Aim.:
Oh! castelhanos
malditos,
(são castelhanos eu
acho)
alegram-me esses seus
ditos
de castelhanos
invictos...
Daqui a pouco os
despacho!
Quero virar castelhano,
Em polida companhia
Com Décio e com
Valeriano,
Porque o espanhol ufano
Sempre guarda cortesia.
Ó mui alta majestade,
osculo as mãos infelizes
de vossa grão crueldade,
pois justiça nem verdade
guardastes, sendo
juizes.
Sou mandado
por São Lourenço
queimado
a levar-vos para casa
onde seja confirmado
vosso imperial estado,
em fogo que sempre
abrasa.
Oh! que tronos e que
camas
já vos tenho
aparelhadas,
nessas escuras moradas,
de vivas e eternas
chamas,
sem nunca ser apagadas!
Val.:
Xe, akái!
Aim.:
Viestes do Paraguai,
que falais em guarani?
Todas línguas aprendi...
Avança tu, Saravai,
aqui teus golpes, aqui!
(Sarav. avança para
Val.)
Val.:
Oh, basta! que me
estraçalhas:
eu não tenho muitas
falhas...
Prende antes o meu
chefão!
Sar.:
Não! és tu o meu
quinhão,
és presa que bem me
calhas!
Déc.:
Oh! miserável de mi,
que nem basta ser
tirano,
nem me mostrar
castelhano!...
Que é do mando em que me
vi,
de meu poder soberano?
Aim.:
Jesus, Deus da redenção,
Que tu, traidor,
perseguiste,
Te dará sorte muito
triste,
a quem malvado seguiste.
Pois me honraste
e sempre me contentaste,
ofendendo a Deus eterno,
é justo que em meu
inferno,
palácio que tanto
amaste,
não passes mal teu
inverno...
Porque esse ódio
inveterado
de teu duro coração
não pode ser abrandado,
se não for retemperado
com água do Flegetão.
Déc.:
Olhai que consolação,
para que se está
queimando!
Sumos deuses, para
quando
dilatais-me a salvação,
que vivo me estou
queimando?
Ai, ai! que mortal
desmaio!
Esculápio, não ouvis?
Jupiter, porque dormis?
Que é de vosso ardente
raio?
Que fazeis? Não acodis?
Aim.:
Que dizeis?
Mal deprioris sofreis?
Tendes o pulso alterado!
É grande cor de costado
este mal de que morreis!
Haveis de ser bem
sangrado!
Dias há que esta sangria
se guardava a vós,
sandeus,
que sangráveis, noite e
dia,
com obstinada porfia,
esses Mártires de Deus.
Muito desejo beber
vosso sangue imperial.
Não me leveis isso a
mal,
que com isto quero ser
homem de sangue real.
Déc.:
Olhai bem, que disparate
e polido desvario!...
Deitem-me dentro dum
rio,
antes que o fogo me
mate,
ó
deuses, em que
confio!
Não quereis
socorrer-me ou não
podeis?
Oh! malditos fementidos,
malvados, desconhecidos,
que nada vos condoeis
de quem fostes tão
servidos!
Se pudesse bater asas,
vos iria desprender
do trono de vossas
casas,
e lançar-vos nessas
brasas
seria meu grão prazer.
Aim.:
Parece-me ser chegada
a hora dos frenesis,
com a febre redobrada,
a qual será mal curada
pelos deuses que servis.
Ou são gabos
de cavaleiros brabos
que têm língua e não
tutano!
E por isso, tão ufano,
vos acolhestes aos rabos
desse estilo
castelhano...
Sar.:
Eis o que és.
Pensavas dar, de revés,
espantosos cutilaços;
mas enfim nossos balaços
deram contigo em través,
com mui poucos
canhoaços.
Porém, que de bofetões
lhes tenho logo de dar!
Os tristes, sem
descansar,
ao chegar de meus
tições,
como perros hão de
uivar.
Val.:
Ó ferida!...
Arranca-me a pobre vida
pois minha alta condição,
contra justiça e razão,
veio a ser tão abatida,
que morro como ladrão!
Sar.:
Não é outro o galardão
que dou aos meus
criados,
senão morrer enforcados,
e depois, sem remissão,
ao fogo ser condenados.
Déc. :
Pois esta é uma pena
dobrada,
Que me causa maior dor:
Que eu, universal
senhor,
Morra morte desonrada
De forca, como traidor.
Já, se fora pelejando,
dando talhos e reveses,
pernas e braços
cortando,
como fiz com os
franceses,
acabara triunfando.
Aim.:
Parece que estais
pensando
poderoso imperador,
quando, com bravo furor,
matastes, traição
armando,
Filipe, vosso senhor.
Por certo que me
alegrais
e se cumprem meus
anseios,
c'os desvairos que
soltais;
porque o fogo, em que
queimais
vos causa tais
devaneios.
Déc.:
Bem entendo
que este fogo, em que me
acendo, é pena da
tirania;
pois com tão cruel
porfia,
aos pobres cristãos
prendendo,
com o fogo os destruía.
Mas em minha monarquia,
que eu acabe em tal
pregão,
morrendo como ladrão,
é terrível agonia
e dobrada confusão!
Aim.:
Como? Pedes
confissão?...
A voar sem asas te
abalas!
Os crimes, em que te
entalas,
sim, merecem ter perdão:
ohl pede-o à deusa
Palas!...
ou a Nero,
esse carniceiro fero
do fiel povo cristão.
Aqui está teu irmão,
Valeriano, tão sincero!
Recebe-o de sua mão!...
Déc.:
Esses amargosos chistes
e baldões
aumentam minhas paixões,
minhas dores,
com tão terríveis
ardores
como de ardentes tições.
E com isto crescem mais
estes fogos que padeço.
Acaba, que já me
apresso,
em tuas mãos, Satanás,
ao tormento que mereço.
Aim.:
Oh! quanto vos agradeço
toda essa boa vontade!
Eu, com liberalidade,
grão refresco vos
of’reço
para vossa enfermidade,
nessa cova,
onde o fogo se renova
com ardores perenais;
lá vossos crimes mortais
farão sempiterna prova
de tormentos eternais.
Déc.:
Que fazes, Valeriano,
bom amigo?
Testemunhas meu castigo,
finalmente,
atado, com a corrente
do fogo sem fim, comigo.
Val.:
Em má hora! Já são
horas!...
Vamos logo
deste fogo ao outro fogo
eternal,
cuja chama perenal
nunca dará desafogo!
Aim.:
Sus! azinhal
Vão logo à nossa
cozinha,
Saravaia!
Sar.:
Não me afasto dessa
laia!
Hoje queima essa
gentinha
a brasa que não desmaia!
Déc.:
Abrasa-me o fogo insano,
assa-me Lourenço assado.
Bem que eu seja um
soberano,
Deus me abrasa, por meu
dano,
vingando seu servo
amado.
Aim.:
É vulgar
que tu quiseste matar
Lourenço, de Deus amigo.
Venho pois te castigar.
Eis aqui teu inimigo:
meu fogo te há de
queimar.
Afogam-nos e entregam-nos aos quatro beleguins, e cada dois levam o seu:
Aim.:
Vinde aqui!
Os malditos conduzi,
para no fogo queimá-los;
a moqueca os reduzi,
para tostá-los, assá-los,
derretê-los, cozinhá-los!
Ficam ambos (Aim. e Sar.) no terreiro com as coroas nas cabeças, e diz Saraivaia:
Sar.:
Oh! eu, vencedor, temido
de malvados desta gleba!
chefe embor conhecido,
dou-me hoje novo apelido
do sapo Cururupeba!
Como os tais,
eu mato os que pecam mais,
dando-os comigo ao meu poço:
homens todos, velho e moço,
presas minhas eternais,
levo todos como almoço.
(Aim. e Sar. retiram-se)
ATO IV:
Sendo o corpo de
São Lourenço amortalhado
e posto na tumba, entra
o Anjo, com o Temor e
Amor de Deus, a despedir
a obra, e no cabo
acompanham o Santo para
a sepultura.
Anj.:
Vendo nosso Deus benigno
vossa grande devoção
que tendes, e com razão,
a Lourenço, mártir digno
de toda a veneração,
determina, por seus rogos
e martírio
singular,
a todos sempre ajudar,
para que escapeis dos fogos
em que os maus se hão de
queimar.
Dois fogos traziam n’alma
com que as brasas
resfriou,
e no fogo, em que se
assou,
com tão gloriosa palma,
dos tiranos triunfou.
Um
fogo foi o Temor
do bravo fogo infernal,
e, como servo leal,
por honrar o seu Senhor,
fugiu da culpa mortal.
Temor de Deus, com seu
recado:
(1º
Mote)
“Pecador,
“engoles, com grão sabor,
“o pecado:
“e não te vês afogado
“com misérias!
“e tuas feridas sérias
“não sentes, desventurado!
(2º
Mote)
“É o inferno,
“com seu fogo sempiterno,
“tua sorte:
“se não segues o teu norte
“nessa cruz,
“em a qual morreu Jesus,
“por que morra tua morte.
Deus te envia esta
mensagem
com amor.
A mim, que sou seu
Temor,
me convém
declarar o que contém,
por que temas o Senhor.
Glosa e declaração do
recado:
1º
Espantado estou de ver,
pecador, teu desafogo.
Com tantos crimes a fazer,
como vives, sem temer
aquele espantoso fogo?
Fogo que nunca descansa,
mas que sempre causa dor,
e, com seu bravo furor,
rouba-lhe toda a esperança
ao maldito “pecador”.
Pecador, como te
entregas
a teus vícios, tão obsceno?
Tu deles estás tão
pleno,
engulindo, tão a cegas,
a culpa, com seu veneno?
Veneno de maldição
tragas, sem nenhum
temor,
e, sem sentir tua dor,
e carnal deleitação
“engoles, com grão sabor”.
Sabor parece o pecado,
muito mais doce que o mel,
porém o inferno cruel
depois te dará bocado,
mais amargoso que o fel.
Fel beberás, sem medida,
pecador desatinado,
tu’alma em fogo encendida.
Esta será a saída
do deleite do “pecado”.
O pecado que tu amas
São Lourenço tanto
odiou,
que mil penas suportou,
e queimado numas chamas,
por não pecar, expirou.
Expuirou, não se entregou:
tu te entregas ao
pecado,
no qual te tem enforcado
Lucifer, que te
afogou...
“e não te vês afogado!”
Afogado pelo esgano
do diabo, se envolveu
Décio com Valeriano,
infiel, cruel, tirano,
no fogo que mereceu.
Mereceu-te a fé a vida,
mas, com faltas
deletérias,
já a tens quase perdida,
e teu Deus, bem sem
medida,
ofendido “com misérias”.
Com
misérias e
pecados,
tu’alma de Deus ausente,
presa na infernal
corrente,
pagará co’os condenados,
pela culpa, duramente.
Duramente te darão
remorso tuas misérias.
Tuas culpas deletérias
teus tormentos dobrarão
“e tuas feridas sérias”.
Sérias são tuas feridas.
Pecador, porque não choras?
Não vês, com tuas demoras,
que estão todas
corrompidas
e cada dia empioras?
Empioras e definhas,
mas teu perigoso estado,
a pressa e grande cuidado,
com que ao inferno
caminhas,
“não sentes, desventurado?”
2º
Que descuido intolerável
tua vida!
Está tu’alma imergida
em o lodo,
e te ris
do mundo todo,
nem sentes tua caída!
Ó traidor!
que negas teu Criador,
Deus eterno,
Que se fez menino terno,
por salvar-te:
e tu queres condenar-te,
e o que não vês “é o inferno”.
Ó insensível!
que não sentes o terrível
espanto, que causará
o Juiz, quando virá,
com a catadura horrível,
e à morte te entregará.
Então tua alma será
sepultada lá no inferno,
onde morte não terá;
mas viva se queimará,
“com o seu fogo sempiterno!”
Ó perdido!
ali serás corrompido,
sem nunca te corromper.
Ali na vida sem viver,
ali choro e grão gemido,
ali morte sem morrer.
Pranto será o teu rir,
teu comer, fome de
morte,
teu beber, sede bem forte,
teu sono, nunca dormir,
tudo isto é a “tua sorte”.
Ó mofino!
pois que verás, de
contino,
ao horrendo Lucifer,
sem nunca chegar a ver
esse conspecto divino
de quem tens todo teu ser.
Acaba já por temer
a Deus que é o teu
suporte,
nele achando a tua
sorte.
Pois não podes dele ser
“se não segues o teu norte”.
Homem louco!
se teu coração já toco,
mudem-se as alegrias
em tristezas e agonias!
Olha que te falta pouco
para findar os teus dias!
Não ofendas mais, revel,
quem te ganhou vida e luz,
com sua morte cruel,
bebendo vinagre e fel
moribundo “nessa cruz”.
Ó malvado!
eis morreu crucificado,
sendo Deus, por te salvar.
Pois que podes esperar,
se foste tu o culpado
e não cessas de pecar?
Tu o ofendes, ele te ama!
Cega ele, por dar-te luz!
E tu, mau, pisas a cruz,
aquela tão dura cama,
“em a qual morreu Jesus!”
Ó cegueira!
que alguém começar não queira
a chorar por teu pecado!
e tomar por advogado
Lourenço, que na
fogueira
por Jesus morreu queimado!
Teme a Deus, juiz
tremendo,
na hora em que a vida se
corte,
só para Jesus vivendo:
pois deu a vida
morrendo,
“por que morra tua morte.”
Amor de Deus, com seu recado:
“Ama a Deus, que te criou,
“homem, de Deus muito amado!
“Ama, com todo cuidado,
“a quem primeiro te amou.
“Seu próprio Filho entregou
“à morte, por te salvar.
“Que mais te podia dar,
“pois, quanto tem, te doou?
Por mandado do Senhor
te disse o que tens ouvido.
Abre todo teu sentido,
porque eu, que sou seu Amor,
seja em ti bem imprimido.
Glosa e declaração do recado:
Todas as coisas criadas
conhecem seu Criador,
e todas lhe têm amor,
pois dele são conservadas,
cada qual em seu vigor.
Pois com tanta
perfeição,
o seu saber te formou,
homem capaz de razão,
de todo teu coração
“ama a Deus que te criou.”
Se amas a criatura,
porque te parece bela,
aquela vista singela
da infinita formosura
ama sobre toda aquela.
Desta divina lindeza
deves ser enamorado,
e seja tua alma presa
daquela suma beleza,
“homem, de Deus muito amado!”
Aborrece todo mal,
com despeito e grão desdém.
E pois tu és racional,
abraça a Deus imortal,
sumo, único e todo bem.
Este abismo de fartura,
que jamais é esgotado,
esta fonte viva e pura,
este rio de doçura,
“ama com todo cuidado.”
Antes que criasse nada,
já a suma majestade
a vida te tinha dada,
tua alma tinha abraçada
com eterna caridade.
Por fazer-te todo Seu,
sua morte cativou;
e pois todo te doou,
dá tu todo esse amor teu
“a quem primeiro te amou.”
Doou-te uma alma imortal
e capaz do Imensurado,
por que fosses ancorado
naquele bem eternal,
sem futuro e sem passado.
Depois que em morte
tombaste,
nova vida te doou
pois sair não alcançaste,
da culpa, a que te entregaste,
“seu próprio filho entregou.”
Entregou-o por escravo,
e quis que fosse
vendido,
para que tu, redimido
do poder do leão bravo,
fosses sempre agradecido.
Por que tu não morras,
morre,
com amor mui singular...
Oh! quanto deves amar
a Deus que a entregar-se corre
“à morte, por te salvar!”
O Filho, que o Pai te deu,
a seu Pai te dá por pai;
a graça te concedeu,
que, quando na cruz
morreu,
sua Mãe te deu por mãe.
Deu-te fé com esperança,
a si mesmo, por manjar,
para em si te transformar,
com a bem-aventurança.
“Que mais te podia dar?”
Em paga por isto tudo,
ó ditoso
pecador,
só pede ele teu amor.
Mete pois o teu estudo
por ganhar a tal Senhor.
Dá a vida pelos bens
que sua morte ganhou.
Seu amor te conquistou:
dá-lhe tudo quanto tem,
“pois, quanto tem, te doou!”
DESPEDIDA
Olhai, meus irmãos, para o céu, que é tão belo:
vereis a Lourenço
reinando com Deus,
ao Rei que é dos reis a
rogar pelos seus,
que estão festejando na terra um modelo.
Daqui por diante guardai grande zelo
que seja Deus sempre temido e amado,
e mártir tão santo, de todos honrado:
tereis seus favores e doce desvelo.
E, pois celebrais, com
tanta afeição,
seu martírio, tomai meu
conselho:
sua vida e virtudes
olhai por espelho,
chamando-o sempre como grão devoção.
Por sua oração vós
tereis o perdão;
de vosso inimigo, perfeita vitória.
Após vossa morte vereis,
já na glória,
a face divina, com clara visão.
ATO V: Dança que se fez na procissão de São Lourenço, de doze meninos:
1º
Cá estamos jubilosos,
em tua celebração.
Por teus rogos valiosos,
Deus, que nos dê os seus
gozos,
fique em nosso coração.
2º
Nós ficaremos contigo,
São Lourenço, padroeiro:
tu nosso país inteiro
guarda de todo inimigo.
Rejeito o viver antigo:
em pagés não confiando,
nem dançando, nem girando,
curandeirismo não sigo.
3º
Tua grande confiança
não deixou teu coração:
ponhamos por tua mão
no pai Jesus esperança,
Para a alma pureza
alcança,
de misérias arejando-a:
vem também tu e,
encantando-a,
com o teu Jesus avança!
4o
Repleto do amor dos céus
foi teu coração outrora:
olha tu por nós agora!
Amemos o nosso Deus
que, qual pai, nos revigora!
5º
Obedeceste ao Senhor,
cumprindo sua vontade.
Oh! vem tu, que és nosso amor!
Celebremos com fulgor
teu dia, na santidade.
6º
Com tuas bênçãos potentes,
curaste enfermos do povo:
teus filhos estão doentes,
só querem leis deprimentes...
Oh! vem curá-los de novo.
7º
Crendo na fé do Senhor,
sofreste a morte de ateus:
concede-nos teu vigor,
para suportar a dor,
como tu, no amor de Deus.
8º
Têm medo de ti os demos,
para os quais tu és
terrível:
expulsa-os de nosso nível;
nas ocas não os achemos,
tornado nossa alma horrível.
9º
Gentios imperadores
por sobre brasas te
assaram,
e o corpo todo sarjaram
em férrea grelha de dores.
Suspiramos nos ardores
de contemplar Quem nos fez:
que venha o Pai, desta vez,
abrasar nossos amores!
10º
Treme de ter-te matado
esses maus chefes antigos.
Vem guardar-nos, muito
amado!
que fiquemos a teu lado,
assustando aos inimigos.
11º
Aos que te mataram dás,
por pena, o fogo infernal.
Tu, na glória divinal,
já para sempre estarás.
Como tu, Deus Pai, em paz,
tenhamos no coração.
Junto a ti, em seu torrão,
Vida longa nos darás.
12º
Nós te metemos aqui,
nas mãos, a nossa guarida,
para ficarmos em ti.
Oh! ama-nos sempre
assim,
enquanto durar a vida.
Finis.
Retirado de:
ANCHIETA, P. Joseph. Teatro de Anchieta. São Paulo: Edições Loyola, 1977. Obras completas 3ºvol. Originais acompanhados de tradução versificada, introdução e notas pelo Pe. Armando Cardoso S. J.