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1
Mas já o claro
amador da Larisséia
Adúltera inclinava os animais
Lá pera o grande lago que rodeia
Temistitão, nos fins Ocidentais;
O grande ardor do Sol Favónio enfreia
Co sopro que nos tanques naturais
Encrespa a água serena e despertava
Os lírios e jasmins, que a calma agrava,
2
Quando as
fermosas Ninfas, cos
amantes
Pela mão, já conformes e contentes,
Subiam pera os paços radiantes
E de metais ornados reluzentes,
Mandados da Rainha, que abundantes
Mesas d’altos manjares
excelentes
Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza
Restaurem da cansada natureza.
3
Ali, em cadeiras
ricas, cristalinas,
Se assentam dous e dous,
amante e dama;
Noutras, à cabeceira, d’ouro
finas,
Está co a bela Deusa o claro Gama.
De iguarias suaves e divinas,
A quem não chega a Egípcia antiga fama ,
Se acumulam os pratos de fulvo ouro,
Trazidos lá do Atlântico tesouro.
4
Os vinhos
odoríferos, que acima
Estão não só do Itálico Falerno
Mas da Ambrósia, que Jove tanto estima
Com todo o ajuntamento sempiterno,
Nos vasos, onde em vão trabalha a lima,
Crespas escumas erguem, que no interno
Coração movem súbita alegria,
Saltando co a mistura d’água
fria.
5
Mil práticas
alegres se tocavam;
Risos doces, sutis e argutos ditos,
Que entre um e outro manjar se ale vantavam,
Despertando os alegres apetitos;
Músicos instrumentos não faltavam
(Quais, no profundo Reino, os nus
espritos
Fizeram descansar da eterna pena)
Cüa voz düa
angélica Sirena.
6
Cantava a bela
Ninfa, e cos acentos,
Que pelos altos paços vão soando,
Em consonância igual, os instumentos
Suaves vêm a um tempo conformando.
Um súbito silêncio enfreia os ventos
E faz ir docemente murmurando
As águas, e nas casas naturais
Adormecer os brutos animais.
7
Com doce voz
está subindo ao Céu
Altos varões que estão por vir ao mundo,
Cujas claras Ideias viu
Proteu
Num globo vão, diáfano, rotundo,
Que Júpiter em dom lho concedeu
Em sonhos, e despois no Reino fundo,
Vaticinando, o disse, e na memória
Recolheu logo a Ninfa a clara história.
8
Matéria é de
coturno, e não de soco,
A que a Ninfa aprendeu no imenso lago;
Qual Iopas não soube, ou
Demodoco,
Entre os Feaces um, outro em Cartago.
Aqui, minha Calíope, te
invoco
Neste trabalho extremo, por que em pago
Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,
O gosto de escrever, que vou perdendo.
9
Vão os anos
descendo, e já do Estio
Há pouco que passar até o Outono;
A Fortuna me faz o engenho frio,
Do qual já não me jacto nem me abono;
Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono.
Mas tu me dá que cumpra, ó grão rainha
Das Musas, co que quero à nação minha!
10
Cantava a bela
Deusa que viriam
Do Tejo, pelo mar que o Gama abrira,
Armadas que as ribeiras venceriam
Por onde o Oceano Índico suspira;
E que os Gentios Reis que não dariam
A cerviz sua ao jugo, o ferro e ira
Provariam do braço duro e forte,
Até render-se a ele ou logo à morte.
11
Cantava dum que
tem nos Malabares
Do sumo sacerdócio a dignidade,
Que, só por não quebrar cos singulares
Barões os nós que dera d’amizade,
Sofrerá suas cidades e lugares,
Com ferro, incêndios, ira e crueldade,
Ver destruir do Samorim potente,
Que tais ódios terá co a nova gente.
12
E canta como lá
se embarcaria
Em Belém o remédio deste dano,
Sem saber o que em si ao mar traria,
O grão Pacheco, Aquiles Lusitano.
O peso sentirão, quando entraria,
O curvo lenho e o férvido Oceano,
Quando mais n’água os troncos que gemerem
Contra sua natureza se meterem.
13
Mas, já chegado
aos fins Orientais
E deixado em ajuda do gentio Rei de
Cochim, com poucos naturais,
Nos braços do salgado e curvo rio
Desbaratará os Naires infernais
No passo Cambalão, tornando frio
D’espanto o ardor imenso do Oriente,
Que verá tanto obrar tão pouca gente.
14
Chamará o
Samorim mais gente nova;
Virão Reis [de] Bipur e de
Tanor,
Das serras de Narsinga, que alta prova
Estarão prometendo a seu senhor;
Fará que todo o Naire, enfim, se mova
Que entre Calecu jaz e Cananor,
D’ambas as Leis imigas pera
a guerra:
Mouros por mar, Gentios pola terra.
15
E todos outra
vez desbaratando,
Por terra e mar, o grão Pacheco ousado,
A grande multidão que irá matando
A todo o Malabar terá admirado.
Cometerá outra vez, não dilatando,
O Gentio os combates, apressado,
Injuriando os seus, fazendo votos
Em vão aos Deuses vãos, surdos e imotos.
16
Já não defenderá
somente os passos,
Mas queimar-lhe-á lugares, templos, casas;
Aceso de ira, o Cão, não vendo lassos
Aqueles que as cidades fazem rasas,
Fará que os seus, de vida pouco escassos,
Cometam o Pacheco, que tem asas,
Por dous passos num tempo; mas voando
Dum noutro, tudo irá desbaratando.
17
Virá ali o
Samorim, por que em pessoa
Veja a batalha e os seus esforce e anime;
Mas um tiro, que com zunido voa,
De sangue o tingirá no andor sublime.
Já não verá remédio ou manha boa
Nem força que o Pacheco muito estime;
Inventará traições e vãos venenos,
Mas sempre (o Céu querendo) fará menos.
18
Que tornará a
vez sétima (cantava)
Pelejar co invicto e forte Luso,
A quem nenhum trabalho pesa e agrava;
Mas, contudo, este só o fará confuso.
Trará pera a batalha, horrenda e brava,
Máquinas de madeiros fora de uso,
Pera lhe abalroar as caravelas,
Que até’li vão lhe fora cometê-las.
19
Pela água levará
serras de fogo
Pera abrasar-lhe quanta armada tenha;
Mas a militar arte e engenho logo
Fará ser vã a braveza com que venha.
- «Nenhum claro barão no Márcio jogo,
Que nas asas da Fama se sustenha,
Chega a este, que a palma a todos toma.
E perdoe-me a ilustre Grécia ou Roma.
20
«Porque tantas
batalhas, sustentadas
Com muito pouco mais de cem soldados,
Com tantas manhas e artes inventadas,
Tantos Cães não imbeles profligados,
Ou parecerão fábulas sonhadas,
Ou que os celestes Coros, invocados,
Decerão a ajudá-lo e lhe darão
Esforço, força, ardil e coração.
21
«Aquele que nos
campos Maratónios
O grão poder de Dário estrui e rende,
Ou quem, com quatro mil Lacedemónios,
O passo de Termópilas defende,
Nem o mancebo Cocles dos
Ausónios,
Que com todo o poder Tusco contende
Em defensa da ponte, ou Quinto Fábio,
Foi como este na guerra forte e sábio.»
22
Mas neste passo
a Ninfa, o som canoro
Abaxando, fez ronco e entristecido,
Cantando em baxa voz, envolta em choro,
O grande esforço mal agardecido.
- «Ó Belisário (disse) que no coro
Das Musas serás sempre engrandecido,
Se em ti viste abatido o bravo Marte,
Aqui tens com quem podes consolar-te!
23
«Aqui
tens companheiro, assi
nos feitos
Como no galardão injusto e duro;
Em ti e nele veremos altos peitos
A baxo estado vir, humilde e escuro.
Morrer nos hospitais, em pobres leitos,
Os que ao Rei e à Lei servem de muro!
Isto fazem os Reis cuja vontade
Manda mais que a justiça e que a verdade.
24
«Isto
fazem os Reis quando embebidos
Nüa aparência branda que os contenta
Dão os prémios, de Aiace
merecidos,
À língua vã de Ulisses, fraudulenta.
Mas vingo-me: que os bens mal repartidos
Por quem só doces sombras apresenta,
Se não os dão a sábios cavaleiros,
Dão-os logo a avarentos lisonjeiros.
25
«Mas tu, de quem
ficou tão mal pagado
Um tal vassalo, ó Rei, só nisto
inico,
Se não és pera dar-lhe honroso estado,
É ele pera dar-te um Reino rico.
Enquanto for o mundo rodeado
Dos Apolíneos raios, eu te fico
Que ele seja entre a gente ilustre e claro,
E tu nisto culpado por avaro.
26
«Mas eis outro
(cantava) intitulado
Vem com nome real e traz consigo
O filho, que no mar será ilustrado,
Tanto como qualquer Romano antigo.
Ambos darão com braço forte, armado,
A Quíloa fértil, áspero castigo,
Fazendo nela Rei leal e humano,
Deitado fora o pérfido tirano.
27
«Também farão
Mombaça, que se arreia
De casas sumptuosas e edifícios,
Co ferro e fogo seu queimada e feia,
Em pago dos passados malefícios.
Despois, na costa da Índia, andando cheia
De lenhos inimigos e artifícios
Contra os Lusos, com velas e com remos
O mancebo Lourenço fará extremos.
28
«Das grandes
naus do Samorim potente,
Que encherão todo o mar, co a férrea pela,
Que sai com trovão do cobre ardente,
Fará pedaços leme, masto, vela.
Despois, lançando arpéus
ousadamente
Na capitaina imiga,
dentro nela
Saltando o fará só com lança e espada
De quatrocentos Mouros despejada.
29
«Mas de Deus a
escondida providência
(Que ela só sabe o bem de que se serve)
O porá onde esforço nem prudência
Poderá haver que a vida lhe reserve.
Em Chaúl, onde em sangue e resistência
O mar todo com fogo e ferro ferve,
Lhe farão que com vida se não saia
As armadas de Egipto e de Cambaia.
30
«Ali o poder de
muitos inimigos
(Que o grande esforço só com força rende),
Os ventos que faltaram, e os perigos
Do mar, que sobejaram, tudo o ofende.
Aqui ressurjam todos os Antigos,
A ver o nobre ardor que aqui se aprende:
Outro Ceva verão, que, espedaçado,
Não sabe ser rendido nem domado.
31
«Com toda
üa coxa fora, que em pedaços
Lhe leva um cego tiro que passara,
Se serve inda dos animosos braços
E do grão coração que lhe ficara.
Até que outro pelouro quebra os laços
Com que co alma o corpo se
liara:
Ela, solta, voou da prisão fora
Onde súbito se acha vencedora.
32 -
( Dom Francisco de Almeida
vinga a morte do filho )
«Vai-te, alma,
em paz, da guerra turbulenta,
Na qual tu mereceste paz serena!
Que o corpo, que em pedaços se apresenta,
Quem o gerou, vingança já lhe ordena:
Que eu ouço retumbar a grão tormenta,
Que vem já dar a dura e eterna pena,
De esperas, basiliscos e trabucos,
A Cambaicos cruéis e Mamelucos.
33
«Eis vem o pai,
com ânimo estupendo,
Trazendo fúria e mágoa por antolhos,
Com que o paterno amor lhe está movendo
Fogo no coração, água nos olhos.
A nobre ira lhe vinha prometendo
Que o sangue fará dar pelos giolhos
Nas inimigas naus; senti-lo-á o Nilo,
Podê-lo-á o Indo ver e o Gange ouvi-lo.
34 -
( Dabul )
«Qual o touro
cioso, que se ensaia
Pera a crua peleja, os cornos tenta
No tronco dum carvalho ou alta faia
E, o ar ferindo, as forças experimenta:
Tal, antes que no seio de Cambaia
Entre Francisco irado, na opulenta
Cidade de Dabul a espada afia,
Abaxando-lhe a túmida ousadia.
35
«E logo,
entrando fero na enseada
De Dio, ilustre em cercos e batalhas,
Fará espalhar a fraca e grande armada
De Calecu, que remos tem por malhas.
A de Melique Iaz,
acautelada,
Cos pelouros que tu,
Vulcano, espalhas,
Fará ir ver o frio e fundo assento,
Secreto leito do húmido elemento.
36
«Mas a de
Mir Hocém, que,
abalroando,
A fúria esperará dos vingadores,
Verá braços e pernas ir nadando
Sem corpos, pelo mar, de seus senhores.
Raios de fogo irão representando,
No cego ardor, os bravos domadores.
Quanto ali sentirão olhos e ouvidos
É fumo, ferro, flamas e alaridos.
37
«Mas ah, que
desta próspera vitória,
Com que despois virá ao pátrio Tejo,
Quási lhe roubará a famosa glória
Um sucesso, que triste e negro vejo!
O Cabo Tormentório, que a memória
Cos ossos guardará, não terá pejo
De tirar deste mundo aquele esprito,
Que não tiraram toda a Índia e Egipto.
38
«Ali,
Cafres selvagens poderão
O que destros imigos não puderam;
E rudos paus tostados sós
farão
O que arcos e pelouros não fizeram.
Ocultos os juízos de Deus são;
As gentes vãs, que não nos entenderam,
Chamam-lhe fado mau, fortuna escura,
Sendo só providência de Deus pura.
39
«Mas oh, que luz
tamanha que abrir sinto
(Dizia a Ninfa, e a voz alevantava)
Lá no mar de Melinde, em sangue tinto
Das cidades de Lamo, de Oja
e Brava,
Pelo Cunha também, que nunca extinto
Será seu nome em todo o mar que lava
As ilhas do Austro, e praias que se chamam
De São Lourenço, e em todo o Sul se afamam!
40
«Esta luz é do
fogo e das luzentes
Armas com que Albuquerque irá amansando
De Ormuz os Párseos, por
seu mal valentes,
Que refusam o jugo honroso e brando.
Ali verão as setas estridentes
Reciprocar-se, a ponta no ar virando
Contra quem as tirou; que Deus peleja
Por quem estende a fé da Madre Igreja.
41
«Ali do sal os
montes não defendem
De corrupção os corpos no combate,
Que mortos pela praia e mar se estendem
De Gerum, de Mazcate e
Calaiate;
Até que à força só de braço aprendem
A abaxar a cerviz, onde se lhe ate
Obrigação de dar o reino inico
Das perlas de Barém
tributo rico.
42
«Que gloriosas
palmas tecer vejo
Com que Vitória a fronte lhe coroa,
Quando, sem sombra vã de medo ou pejo,
Toma a ilha ilustríssima de Goa!
Despois, obedecendo ao duro ensejo,
A deixa, e ocasião espera boa
Com que a torne a tomar, que esforço e arte
Vencerão a Fortuna e o próprio Marte.
43
«Eis já
sobr’ela
torna e vai rompendo
Por muros, fogo, lanças e pelouros,
Abrindo com a espada o espesso e horrendo
Esquadrão de Gentios e de Mouros.
Irão soldados ínclitos fazendo
Mais que liões famélicos e touros,
Na luz que sempre celebrada e dina
Será da Egípcia Santa Caterina.
44
«Nem tu menos
fugir poderás deste,
Posto que rica e posto que assentada
Lá no grémio da Aurora, onde
naceste,
Opulenta Malaca nomeada.
As setas venenosas que fizeste,
Os crises com que já te vejo armada,
Malaios namorados, Jaus valentes,
Todos farás ao Luso obedientes.»
45
Mais
estanças cantara esta Sirena
Em louvor do ilustríssimo Albuquerque,
Mas alembrou-lhe üa ira
que o condena,
Posto que a fama sua o mundo cerque.
O grande Capitão, que o fado ordena
Que com trabalhos glória eterna merque,
Mais há-de ser um brando companheiro
Pera os seus, que juiz cruel e inteiro.
46
Mas em tempo que
fomes e asperezas,
Doenças, frechas e trovões ardentes,
A sazão e o lugar, fazem cruezas
Nos soldados a tudo obedientes,
Parece de selváticas brutezas,
De peitos inumanos e insolentes,
Dar extremo suplício pela culpa
Que a fraca humanidade e Amor desculpa.
47
Não será a culpa
abominoso incesto
Nem violento estupro em virgem pura,
Nem menos adultério desonesto,
Mas cüa escrava vil, lasciva e escura.
Se o peito, ou de cioso, ou de modesto,
Ou de usado a crueza fera e dura,
Cos seus üa ira insana
não refreia,
Põe na fama alva noda negra e feia.
48
Viu Alexandre
Apeles namorado
Da sua Campaspe, e deu-lha alegremente,
Não sendo seu soldado exprimentado,
Nem vendo-se num cerco duro e urgente.
Sentiu Ciro que andava já abrasado
Araspas, de Panteia, em
fogo ardente,
Que ele tomara em guarda, e prometia
Que nenhum mau desejo o venceria;
49
Mas, vendo o
ilustre Persa que vencido
Fora de Amor, que, enfim, não tem defensa,
Levemente o perdoa, e foi servido
Dele num caso grande,
em recompensa.
Per força, de Judita foi marido
O férreo Balduíno; mas dispensa
Carlos, pai dela, posto em causas grandes,
Que viva e povoador seja de Frandes.
50
Mas,
prosseguindo a Ninfa o longo canto,
De Soares cantava, que as bandeiras
Faria tremular e pôr espanto
Pelas roxas Arábicas ribeiras:
- «Medina abominábil teme tanto,
Quanto Meca e Gidá, co
as derradeiras
Praias de Abássia; Barborá
se teme
Do mal de que o empório Zeila geme.
51
«A nobre ilha
também de Taprobana,
Já pelo nome antigo tão famosa
Quanto agora soberba e soberana
Pela cortiça cálida, cheirosa,
Dela dará tributo à Lusitana
Bandeira, quando, excelsa e gloriosa,
Vencendo se erguerá na torre erguida,
Em Columbo, dos próprios tão temida.
52
«Também
Sequeira, as ondas Eritreias
Dividindo, abrirá novo caminho
Pera ti, grande Império, que te
arreias
De seres de Candace e Sabá
ninho.
Maçuá, com cisternas de água cheias
Verá, e o porto Arquico, ali vizinho;
E fará descobir remotas
Ilhas,
Que dão ao mundo novas maravilhas.
53
«Virá
despois Meneses, cujo ferro
Mais na Africa, que cá, terá provado;
Castigará de Ormuz soberba o erro,
Com lhe fazer tributo dar dobrado.
Também tu, Gama, em pago do desterro
Em que estás e serás inda tornado,
Cos títulos de Conde e d’honras nobres
Virás mandar a terra que descobres.
54 -
( Morte de Vasco da Gama )
«Mas aquela
fatal necessidade
De quem ninguém se exime dos humanos,
Ilustrado co a Régia dignidade,
Te tirará do mundo e seus enganos.
Outro Meneses logo, cuja idade
É maior na prudência que nos anos,
Governará; e fará o ditoso Henrique
Que perpétua memória dele fique.
55
«Não vencerá
somente os Malabares,
Destruindo Panane com Coulete,
Cometendo as bombardas, que, nos ares,
Se vingam só do peito que as comete;
Mas com virtudes, certo, singulares,
Vence os imigos d’alma
todos sete;
De cobiça triunfa e incontinência,
Que em tal idade é suma de excelência.
56
«Mas,
despois que as Estrelas o chamarem,
Sucederás, ó forte Mascarenhas;
E, se injustos o mando te tomarem,
Prometo-te que fama eterna tenhas.
Pera teus inimigos confessarem
Teu valor alto, o fado quer que venhas
A mandar, mais de palmas coroado,
Que de fortuna justa acompanhado.
57
«No reino de
Bintão, que tantos danos
Terá a Malaca muito tempo
feitos,
Num só dia as injúrias de mil anos
Vingarás, co valor de ilustres peitos.
Trabalhos e perigos inumanos,
Abrolhos férreos mil, passos estreitos,
Tranqueiras, baluartes, lanças, setas:
Tudo fico que rompas e sometas.
58
«Mas na Índia,
cobiça e ambição,
Que claramente põem aberto o rosto
Contra Deus e Justiça, te farão
Vitupério nenhum, mas só desgosto.
Quem faz injúria vil e sem razão,
Com forças e poder em que está posto,
Não vence; que a vitória verdadeira
É saber ter justiça nua e inteira.
59
«Mas, contudo,
não nego que Sampaio
Será, no esforço, ilustre e assinalado,
Mostrando-se no mar um fero raio,
Que de inimigos mil verá coalhado.
Em Bacanor fará cruel ensaio
No Malabar, pera que,
amedrontado,
Despois a ser vencido dele venha
Cutiale, com quanta armada tenha.
60
«E não menos de
Dio a fera frota,
Que Chaúl temerá, de grande e ousada,
Fará, co a vista só,
perdida e rota,
Por Heitor da Silveira e destroçada;
Por Heitor Português, de quem se nota
Que na costa Cambaica, sempre armada,
Será aos Guzarates tanto dano,
Quanto já foi aos Gregos o Troiano.
61
«A Sampaio feroz
sucederá
Cunha, que longo tempo tem o leme:
De Chale as torres altas erguerá,
Enquanto Dio ilustre dele treme;
O forte Baçaim se lhe dará,
Não sem sangue, porém, que nele geme
Melique, porque à força só de espada
A tranqueira soberba vê tomada.
62
«Trás este vem
Noronha, cujo auspício
De Dio os Rumes feros afugenta;
Dio, que o peito e bélico exercício
De António da Silveira bem sustenta.
Fará em Noronha a morte o usado ofício,
Quando um teu ramo, ó Gama, se exprimenta
No governo do Império, cujo zelo
Com medo o Roxo Mar fará amarelo.
63
«Das mãos do teu
Estêvão vem tomar
As rédeas um, que já será ilustrado
No Brasil, com vencer e castigar
O pirata Francês, ao mar usado.
Despois, Capitão-mor do Índico mar,
O muro de Damão, soberbo e armado,
Escala e primeiro entra a porta aberta,
Que fogo e frechas mil terão coberta.
64 -
( Dio )
«A este o Rei
Cambaico soberbíssimo
Fortaleza dará na rica Dio,
Por que contra o Mogor poderosíssimo
Lhe ajude a defender o senhorio.
Despois irá com peito
esforçadíssimo
A tolher que não passe o Rei gentio
De Calecu, que assi com
quantos veio
O fará retirar, de sangue cheio.
65
«Destruirá a
cidade Repelim,
Pondo o seu Rei, com muitos, em fugida;
E despois, junto ao Cabo
Comorim,
üa façanha faz esclarecida:
A frota principal do Samorim,
Que destruir o mundo não duvida,
Vencerá co furor do ferro e fogo;
Em si verá Beadala o Márcio jogo.
66
«Tendo
assi limpa a Índia dos imigos,
Virá despois com ceptro
a governá-Ia
Sem que ache resistência nem perigos,
Que todos tremem dele e nenhum fala.
Só quis provar os ásperos castigos
Baticalá, que vira já Beadala.
De sangue e corpos mortos ficou cheia
E de fogo e trovões desfeita e feia.
67
«Este será
Martinho, que de Marte
O nome tem co as obras derivado;
Tanto em armas ilustre em toda parte,
Quanto, em conselho, sábio e bem cuidado.
Suceder-lhe-á ali Castro, que o estandarte
Português terá sempre levantado,
Conforme sucessor ao sucedido,
Que um ergue Dio, outro o defende erguido.
68
«Persas
feroces, Abassis e
Rumes,
Que trazido de Roma o nome têm,
Vários de gestos, vários de costumes
(Que mil nações ao cerco feras vêm),
Farão dos Céus ao mundo vãos queixumes
Porque uns poucos a terra lhe detêm.
Em sangue Português,
juram, descridos,
De banhar os bigodes retorcidos.
69 -
«Basiliscos
medonhos e liões,
Trabucos feros, minas encobertas,
Sustenta Mascarenhas cos barões
Que tão ledos as mortes têm por certas;
Até que, nas maiores opressões,
Castro libertador, fazendo ofertas
Das vidas de seus filhos, quer que fiquem
Com fama eterna e a Deus se sacrifiquem.
70
«Fernando, um
deles, ramo da alta pranta,
Onde o violento fogo, com ruido,
Em pedaços os muros no ar levanta,
Será ali arrebatado e ao Céu subido.
Álvaro, quando o Inverno o mundo espanta
E tem o caminho húmido impedido,
Abrindo-o, vence as ondas e os perigos,
Os ventos e despois os inimigos.
71
«Eis vem
despois o pai, que as ondas
corta
Co restante da gente Lusitana,
E com força e saber, que mais importa,
Batalha dá felice e soberana.
Uns, paredes subindo, escusam porta;
Outros a abrem na fera esquadra insana.
Feitos farão tão dinos de memória
Que não caibam em verso ou larga história.
72
«Este,
despois, em campo se apresenta,
Vencedor forte e intrépido, ao possante
Rei de Cambaia e a vista lhe amedrenta
Da fera multidão quadrupedante.
Não menos suas terras mal sustenta
O Hidalcão, do braço triunfante
Que castigando vai Dabul na costa;
Nem lhe escapou Pondá, no sertão posta.
73
«Estes e outros
Barões, por várias partes,
Dinos todos de fama e maravilha,
Fazendo-se na terra bravos Martes,
Virão lograr os gostos desta Ilha,
Varrendo triunfantes estandartes
Pelas ondas que corta a aguda quilha;
E acharão estas Ninfas e estas mesas,
Que glórias e honras são de árduas empresas.»
74
Assi
cantava a Ninfa; e as outras todas,
Com sonoroso aplauso, vozes davam,
Com que festejam as alegres vodas
Que com tanto prazer se celebravam.
- «Por mais que da Fortuna andem as rodas
(Nüa
cônsona voz todas soavam),
Não vos hão-de faltar, gente famosa,
Honra, valor e fama gloriosa.»
75
Despois
que a corporal necessidade
Se satisfez do mantimento nobre,
E na harmonia e doce suavidade
Viram os altos feitos que descobre,
Tétis, de graça ornada e gravidade,
Pera que com mais alta glória dobre
As festas deste alegre e claro dia,
Pera o felice Gama
assi dizia:
76
- «Faz-te mercê,
barão, a Sapiência
Suprema de, cos olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Sigue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu cos
mais.»
Assi lhe diz e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.
77
Não andam muito
que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vêm no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfícia, claramente.
78
Qual a matéria
seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a Divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,
Nunca s’ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem; e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte,
|
79
Uniforme,
perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: - «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.
80
«Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfícia tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.
81
«Este orbe
que, primeiro, vai cercando
Os outros mais pequenos que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando
Que a vista cega e a mente vil também,
Empíreo se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele Bem
Tamanho, que ele só se entende e alcança,
De quem não há no mundo semelhança.
82
«Aqui, só
verdadeiros, gloriosos
Divos estão, porque eu, Saturno e
Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só pera fazer versos deleitosos
Servimos; e, se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso.
83
«E também,
porque a santa Providência,
Que em Júpiter aqui se representa,
Por espíritos mil que têm prudência
Governa o Mundo todo que sustenta
(Ensina-lo a profética ciência,
Em muitos dos exemplos que apresenta);
Os que são bons, guiando, favorecem,
Os maus, em quanto podem, nos empecem;
84
«Quer logo
aqui a pintura que varia
Agora deleitando, ora ensinando,
Dar-lhe nomes que a antiga Poesia
A seus Deuses já dera, fabulando;
Que os Anjos de celeste companhia
Deuses o sacro verso está chamando,
Nem nega que esse nome preminente
Também aos maus se dá, mas falsamente.
85
«Enfim que o
Sumo Deus, que por segundas
Causas obra no Mundo, tudo manda.
E tornando a contar-te das profundas
Obras da Mão Divina veneranda,
Debaxo deste círculo onde as
mundas
Almas divinas gozam, que não anda,
Outro corre, tão leve e tão ligeiro
Que não se enxerga: é o Móbile primeiro.
86
«Com este
rapto e grande movimento
Vão todos os que dentro tem no seio;
Por obra deste, o Sol, andando a tento,
O dia e noite faz, com curso alheio.
Debaxo deste leve, anda
outro lento,
Tão lento e sojugado a duro freio,
Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,
Duzentos cursos faz, dá ele um passo.
87
«Olha
estoutro debaxo, que
esmaltado
De corpos lisos anda e radiantes,
Que também nele tem curso ordenado
E nos seus axes correm cintilantes.
Bem vês como se veste e faz ornado
Co largo Cinto d, ouro, que
estelantes
Animais doze traz afigurados,
Apousentos de Febo
limitados.
88
«Olha por
outras partes a pintura
Que as Estrelas fulgentes vão fazendo:
Olha a Carreta, atenta a Cinosura,
Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo;
Vê de Cassiopeia a
fermosura
E do Orionte o gesto turbulento;
Olha o Cisne morrendo que suspira,
A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.
89
«Debaxo
deste grande Firmamento,
Vês o céu de Saturno, Deus antigo;
Júpiter logo faz o movimento,
E Marte abaxo, bélico inimigo;
O claro Olho do céu, no quarto assento,
E Vénus, que os amores traz
consigo;
Mercúrio, de eloquência soberana;
Com três rostos, debaxo vai Diana.
90
«Em todos
estes orbes, diferente
Curso verás, nuns grave e noutros leve;
Ora fogem do Centro longamente,
Ora da Terra estão caminho breve,
Bem como quis o Padre omnipotente,
Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,
Os quais verás que jazem mais a dentro
E tem co Mar a Terra por seu centro.
91
«Neste
centro, pousada dos humanos,
Que não somente, ousados, se contentam
De sofrerem da terra firme os danos,
Mas inda o mar instábil
exprimentam,
Verás as várias partes, que os insanos
Mares dividem, onde se apousentam
Várias nações que mandam vários Reis,
Vários costumes seus e várias leis.
92
«Vês Europa
Cristã, mais alta e clara
Que as outras em polícia e fortaleza.
Vês África, dos bens do mundo avara,
Inculta e toda cheia de bruteza;
Co Cabo que até’aqui
se vos negara,
Que assentou pera o Austro a Natureza.
Olha essa terra toda, que se habita
Dessa gente sem Lei, quási infinita.
93
«Vê do
Benomotapa o grande império,
De selvática gente, negra e nua,
Onde Gonçalo morte e vitupério
Padecerá, pola Fé
santa sua.
Nace por este incógnito
Hemispério
O metal por que mais a gente sua.
Vê que do lago donde se derrama
O Nilo, também vindo está Cuama.
94
«Olha as
casas dos negros, como estão
Sem portas, confiados, em seus ninhos,
Na justiça real e defensão
E na fidelidade dos vizinhos;
Olha deles a bruta multidão,
Qual bando espesso e negro de estorninhos,
Combaterá em Sofala a fortaleza, Que
defenderá Nhaia com destreza.
95
«Olha lá
as alagoas donde o Nilo
Nace, que não souberam os antigos;
Vê-lo rega, gerando o crocodilo,
Os povos Abassis, de Crista amigos;
Olha como sem muros (novo estilo)
Se defendem milhor dos inimigos;
Vê Méroe, que ilha foi de antiga fama,
Que ora dos naturais Nobá se chama.
96
«Nesta
remota terra um filho teu
Nas armas contra os Turcos será claro;
Há-de ser Dom Cristóvão o nome seu;
Mas contra o fim fatal não há reparo.
Vê cá a costa do mar, onde te deu
Melinde hospício gasalhoso
e caro;
O Rapto rio nota, que o romance
Da terra chama Obi; entra em
Quilmance.
97
«O Cabo vê
já Arómata chamado,
E agora Guardafú, dos moradores,
Onde começa a boca do afamado
Mar Roxo, que do fundo toma as cores;
Este como limite está lançado
Que divide Asia de Africa;
e as milhores
Povoações que a parte Africa tem
Maçuá são, Arquico e
Suaquém.
98
«Vês o
extremo Suez, que antigamente
Dizem que foi dos Héroas a cidade
(Outros dizem que Arsínoe),
e ao presente
Tem das frotas do Egipto a potestade.
Olha as águas nas quais abriu patente
Estrada o grão Mousés na antiga idade.
Ásia começa aqui, que se apresenta
Em terras grande, em reinos opulenta.
99
«Olha o
monte Sinai, que se ennobrece
Co sepulcro de Santa
Caterina;
Olha Toro e Gidá, que lhe falece
Água das fontes, doce e cristalina;
Olha as portas do Estreito, que fenece
No reino da seca Ádem, que confina
Com a serra d’Arzira,
pedra viva,
Onde chuva dos céus se não deriva.
100
«Olha
as Arábias três, que tanta terra
Tomam, todas da gente vaga e baça,
Donde vêm os cavalos pera a guerra,
Ligeiros e feroces, de alta raça;
Olha a costa que corrre, até que cera
Outro Estreito de Pérsia, e faz a traça
O Cabo que co nome se apelida
Da cidade Fartaque, ali sabida.
101
«Olha
Dófar, insigne porque manda
O mais cheiroso incenso pera as aras;
Mas atenta: já cá destoutra banda
De Roçalgate, e praias sempre avaras,
Começa o reino Ormuz,
que todo se anda
Pelas ribeiras que inda serão claras
Quando as galés do Turco e fera armada
Virem de Castelbranco nua a espada.
102 -
«Olha o Cabo
Asaboro, que chamado
Agora é Moçandão, dos navegantes;
Por aqui entra o lago que é fechado
De Arábia e Pérsias terras abundantes.
Atenta a ilha Barém, que o fundo ornado
Tem das suas perlas ricas, e imitantes
A cor da Aurora; e vê na água salgada
Ter o Tígris e Eufrates üa
entrada.
103
«Olha da
grande Pérsia o império nobre,
Sempre posto no campo e nos cavalos,
Que se injuria de usar fundido cobre
E de não ter das armas sempre os calos.
Mas vê a ilha Gerum, como descobre
O que fazem do tempo os intervalos,
Que da cidade Armuza, que ali esteve,
Ela o nome despois e a glória teve.
104
«Aqui de Dom
Filipe de Meneses
Se mostrará a virtude, em armas clara,
Quando, com muito poucos Portugueses,
Os muitos Párseos vencerá de Lara.
Virão provar os golpes e reveses
De Dom Pedro de Sousa, que provara
Já seu braço em Ampaza, que deixada
Terá por terra, à força só de espada.
105
«Mas
deixemos o Estreito e o conhecido
Cabo de Jasque, dito já
Carpela,
Com todo o seu terreno mal querido
Da Natura e dos dões usados dela;
Carmânia teve já por apelido.
Mas vês o fermoso Indo, que daquela
Altura nace, junto à qual, também
Doutra altura correndo o
Gange vem?
106
«OIha
a terra de Ulcinde, fertilíssima,
E de Jáquete a íntima enseada;
Do mar a enchente súbita, grandíssima,
E a vazante, que foge apressurada.
A terra de Cambaia vê, riquíssima,
Onde do mar o seio faz entrada;
Cidades outras mil, que vou passando,
A vós outros aqui se estão guardando.
107
«Vês corre a
costa célebre Indiana
Pera o Sul, até o Cabo
Comori,
Já chamado Cori, que
Taprobana
(Que ora é Ceilão) defronte tem de si.
Por este mar a gente Lusitana,
Que com armas virá despois de ti,
Terá vitórias, terras e cidades,
Nas quais hão-de viver muitas idades.
108
«As
províncias que entre um e o outro rio
Vês, com várias nações, são infinitas:
Um reino Mahometa, outro Gentio,
A quem tem o Demónio leis escritas.
Olha que de Narsinga o senhorio
Tem as relíquias santas e benditas
Do corpo de Tomé, barão sagrado,
Que a Jesu Cristo teve a mão no lado.
109 -
«Aqui a
cidade foi que se chamava
Meliapor, fermosa,
grande e rica;
Os Ídolos antigos adorava
Como inda agora faz a gente inica.
Longe do mar naquele tempo estava,
Quando a Fé, que no mundo se pubrica,
Tomé vinha prègando, e já passara
Províncias mil do mundo, que ensinara.
110
«Chegado
aqui, pregando e junto dando
A doentes saúde, a mortos vida,
Acaso traz um dia o mar, vagando,
Um lenho de grandeza desmedida.
Deseja o Rei, que andava edificando,
Fazer dele madeira; e não duvida
Poder tirá-lo a terra, com possantes
Forças d’ homens, de engenhos, de
alifantes.
111
«Era tão
grande o peso do madeiro
Que, só pera abalar-se, nada abasta;
Mas o núncio de Cristo verdadeiro
Menos trabalho em tal negócio gasta:
Ata o cordão que traz, por derradeiro,
No tronco, e fàcilmente o leva e arrasta
Pera onde faça um sumptuoso
templo
Que ficasse aos futuros por exemplo.
112
«Sabia bem
que se com fé formada
Mandar a um monte surdo que se mova,
Que obedecerá logo à voz sagrada,
Que assi lho ensinou Cristo, e ele o prova.
A gente ficou disto alvoraçada;
Os Brâmenes o têm por cousa nova;
Vendo os milagres, vendo a santidade,
Hão medo de perder autoridade.
113
«São estes
sacerdotes dos Gentios
Em quem mais penetrado tinha enveja;
Buscam maneiras mil, buscam desvios,
Com que Tomé não se ouça, ou morto seja.
O principal, que ao peito traz os fios,
Um caso horrendo faz, que o mundo veja
Que inimiga não há, tão dura e fera,
Como a virtude falsa, da sincera.
114
«Um filho próprio mata, e logo acusa
De homicídio Tomé, que era inocente;
Dá falsas testemunhas, como se usa;
Condenaram-no a morte brevemente.
O Santo, que não vê milhor escusa
Que apelar pera o Padre
omnipotente,
Quer, diante do Rei e dos senhores,
Que se faça um milagre dos maiores.
115
«O corpo morto manda ser trazido,
Que res[s]ucite e
seja perguntado
Quem foi seu matador, e será crido
Por testemunho, o seu, mais aprovado.
Viram todos o moço vivo, erguido,
Em nome de Jesu crucificado:
Dá graças a Tomé, que lhe deu vida,
E descobre seu pai ser homicida.
116
«Este milagre fez tamanho espanto
Que o Rei se banha logo na água santa,
E muitos após ele; um beija o manto,
Outro louvor do Deus de Tomé canta.
Os Brâmenes se encheram de ódio tanto,
Com seu veneno os morde enveja tanta,
Que, persuadindo a isso o povo rudo,
Determinam matá-lo, em fim de tudo.
117
«Um dia que pregando ao povo estava,
Fingiram entre a gente um arruído.
(Já Cristo neste tempo lhe ordenava
Que, padecendo, fosse ao Céu subido);
A multidão das pedras que voava
No Santo dá, já a tudo oferecido;
Um dos maus, por fartar-se mais depressa,
Com crua lança o peito lhe atravessa.
118
«Choraram-te, Tomé, o Gange e o Indo;
Chorou-te toda a terra que pisaste;
Mais te choram as almas que vestindo
Se iam da santa Fé que lhe ensinaste.
Mas os Anjos do Céu, cantando e rindo,
Te recebem na glória que ganhaste.
Pedimos-te que a Deus ajuda peças
Com que os teus Lusitanos favoreças.
119
«E vós outros que os nomes usurpais
De mandados de Deus, como Tomé,
Dizei: se sois mandados, como estais
Sem irdes a pregar a santa Fé?
Olhai que, se sois Sal e vos danais
Na pátria, onde profeta ninguém é,
Com que se salgarão em nossos dias
(Infiéis deixo) tantas heresias?
120
«Mas passo esta matéria perigosa
E tornemos à costa debuxada.
Já com esta cidade tão famosa
Se faz curva a Gangética enseada;
Corre Narsinga, rica e poderosa;
Corre Orixa, de roupas abastada;
No fundo da enseada, o ilustre rio
Ganges vem ao salgado senhorio;
121
«Ganges, no qual os seus habitadores
Morrem banhados, tendo por certeza
Que, inda que sejam grandes pecadores,
Esta água santa os lava e dá pureza.
Vê Catigão, cidade das
milhores
De Bengala província, que se preza
De abundante. Mas olha que está posta
Pera o Austro, daqui virada, a costa.
122
«Olha o reino Arracão; olha o assento
De Pegu, que já monstros povoaram,
Monstros filhos do feio ajuntamento
Düa mulher e um cão, que sós se acharam.
Aqui soante arame no instrumento
Da geração costumam, o que usaram
Por manha da Rainha que, inventando
Tal uso, deitou fora o error nefando.
123
«Olha Tavai cidade, onde começa
De Sião largo o império tão comprido;
Tenassari, Quedá,
que é só cabeça
Das que pimenta ali têm produzido.
Mais avante fareis que se conheça
Malaca por empório
ennobrecido,
Onde toda a província do mar grande
Suas mercadorias ricas mande.
124
«Dizem que desta terra co as possantes
Ondas o mar, entrando, dividiu
A nobre ilha Samatra, que já
d’antes
Juntas ambas a gente antiga viu.
Quersoneso foi dita; e das prestantes
Veias d’ouro que a
terra produziu,
'Aurea', por epitéto
lhe ajuntaram;
Alguns que fosse Ofir imaginaram.
125
«Mas, na ponta da terra, Cingapura
Verás, onde o caminho às naus se estreita;
Daqui tornando a costa à Cinosura,
Se encurva e pera a Aurora se endireita.
Vês Pam, Patane,
reinos, e a longura
De Sião, que estes e outros mais
sujeita;
Olha o rio Menão, que se derrama
Do grande lago que Chiamai se chama.
126
Vês neste grão terreno os diferentes
Nomes de mil nações, nunca sabidas:
Os Laos, em terra e número potentes;
Avás, Bramás, por
serras tão compridas;
Vê nos remotos montes outras gentes,
Que Gueos se chamam, de
selvages vidas;
Humana carne comem, mas a sua
Pintam com ferro ardente, usança crua.
127
«Vês, passa por Camboja
Mecom rio,
Que capitão das águas se interpreta;
Tantas recebe d’ outro só no Estio,
Que alaga os campos largos e inquieta;
Tem as enchentes quais o Nilo frio;
A gente dele crê, como indiscreta,
Que pena e glória têm, despois de morte,
Os brutos animais de toda sorte.
128
«Este receberá, plácido e brando,
No seu regaço os Cantos que molhados
Vêm do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baxos escapados,
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado
Naquele cuja Lira sonorosa
Será mais afamada que ditosa.
129
«Vês, corre a costa que
Champá se chama,
Cuja mata é do pau cheiroso ornada;
Vês Cauchichina está, de escura fama,
E de Ainão vê a incógnita enseada;
Aqui o soberbo Império, que se afama
Com terras e riqueza não cuidada,
Da China corre, e ocupa o senhorio
Desde o Trópico ardente ao Cinto frio.
130
«Olha o muro e edifício nunca crido,
Que entre um império e o outro se edifica,
Certíssimo sinal, e conhecido,
Da potência real, soberba e rica.
Estes, o Rei que têm, não foi nascido
Príncipe, nem dos pais aos filhos fica,
Mas elegem aquele que é famoso
Por cavaleiro, sábio e virtuoso.
131
«Inda outra muita terra se te esconde
Até que venha o tempo de mostrar-se;
Mas não deixes no mar as Ilhas onde
A Natureza quis mais afamar-se:
Esta, meia escondida, que responde
De longe à China, donde vem buscar-se,
É Japão, onde nace a prata fina,
Que ilustrada será co a Lei divina.
132
«Olha cá pelos mares do Oriente
Ás infinitas Ilhas espalhadas:
Vê Tidore e Ternate,
co fervente
Cume, que lança as flamas ondeadas.
As árvores verás do cravo ardente,
Co sangue Português inda compradas.
Aqui há as áureas aves, que não decem
Nunca à terra e só mortas aparecem.
133
«Olha de Banda as Ilhas, que se esmaltam
Da vária cor que pinta o roxo fruto;
Às aves variadas, que ali saltam,
Da verde noz tomando seu tributo.
Olha também Bornéu, onde não faltam
Lágrimas no licor coalhado e enxuto
Das árvores, que cânfora é chamado,
Com que da Ilha o nome é celebrado.
134
«Ali também Timor, que o lenho manda
Sândalo, salutífero e
cheiroso;
Olha a Sunda, tão larga que
üa banda
Esconde pera o Sul dificultoso;
A gente do Sertão, que as terras anda,
Um rio diz que tem miraculoso,
Que, por onde ele só, sem outro, vai,
Converte em pedra o pau que nele cai.
135
«Vê naquela que o tempo tornou Ilha,
Que também flamas trémulas
vapora,
A fonte que óleo mana, e a maravilha
Do cheiroso licor que o tronco chora,
- Cheiroso, mais que quanto estila a filha
De Ciniras na Arábia, onde ela mora;
E vê que, tendo quanto as outras têm,
Branda seda e fino ouro dá também.
136
«Olha, em Ceilão, que o monte se alevanta
Tanto que as nuvens passa ou a vista engana;
Os naturais o têm por cousa santa,
Pola pedra onde está a pegada humana.
Nas ilhas de Maldiva nace
a pranta
No profundo das águas, soberana,
Cujo pomo contra o veneno urgente
É tido por antídoto excelente.
137
«Verás defronte estar do Roxo Estreito
Socotorá, co amaro
aloé famosa;
Outras ilhas, no mar também sujeito
A vós, na costa de África arenosa,
Onde sai do cheiro mais perfeito
A massa, ao mundo oculta e preciosa.
De São Lourenço vê a Ilha afamada,
Que Madagáscar é dalguns
chamada.
138
«Eis aqui as novas partes do Oriente
Que vós outros agora ao mundo dais,
Abrindo a porta ao vasto mar patente,
Que com tão forte peito navegais.
Mas é também razão que, no Ponente,
Dum Lusitano um feito inda vejais,
Que, de seu Rei mostrando-se agravado,
Caminho há-de fazer nunca cuidado.
139
«Vedes a grande terra que contina
Vai de Calisto ao seu contrário Pólo,
Que soberba a fará a luzente mina
Do metal que a cor tem do louro Apolo.
Castela, vossa amiga, será dina
De lançar-lhe o colar ao rudo colo.
Varias províncias tem de várias gentes,
Em ritos e costumes, diferentes.
140
«Mas cá onde mais se alarga, ali tereis
Parte também, co pau vermelho nota;
De Santa Cruz o nome lhe poreis;
Descobri-la-á a primeira vossa frota.
Ao longo desta costa, que tereis,
Irá buscando a parte mais remota
O Magalhães, no feito, com verdade,
Português, porém não na lealdade.
141
«Dês que passar a via mais que meia
Que ao Antártico Pólo vai da Linha,
Düa estatura quási
giganteia
Homens verá, da terra ali vizinha;
E mais avante o Estreito que se arreia
Co nome dele agora, o qual caminha
Pera outro mar e terra que fica onde
Com suas frias asas o Austro a esconde.
142
«Até’aqui Portugueses concedido
Vos é saberdes os futuros feitos
Que, pelo mar que já deixais sabido,
Virão fazer barões de fortes peitos.
Agora, pois que tendes aprendido
Trabalhos que vos façam ser aceitos
As eternas esposas e fermosas,
Que coroas vos tecem gloriosas,
143
«Podeis-vos embarcar, que tendes vento
E mar tranquilo, pera
a pátria amada.»
Assi lhe disse; e logo movimento
Fazem da Ilha alegre e namorada.
Levam refresco e nobre mantimento;
Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter
eternamente,
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.
144
Assi foram cortando o mar sereno,
Com vento sempre manso e nunca irado,
Até que houveram vista do terreno
Em que naceram, sempre desejado.
Entraram pela foz do Tejo ameno,
E à sua pátria e Rei temido e amado
O prémio e glória dão por que mandou,
E com títulos novos se ilustrou.
145
Nô mais, Musa, nô
mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Düa austera, apagada e vil tristeza.
146
E não sei por que influxo de Destino
Não tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que os ânimos levanta de contino
A ter pera trabalhos ledo o
rosto.
Por isso vós, ó Rei, que por divino
Conselho estais no régio sólio posto,
Olhai que sois (e vede as outras gentes)
Senhor só de vassalos excelentes.
147
Olhai que ledos vão, por várias vias,
Quais rompentes liões e bravos touros,
Dando os corpos a fomes e vigias,
A ferro, a fogo, a setas e pelouros,
A quentes regiões, a plagas frias,
A golpes de Idolátras e de Mouros,
A perigos incógnitos do mundo,
A naufrágios, a pexes, ao profundo.
148
Por vos servir, a tudo aparelhados;
De vós tão longe, sempre obedientes;
A quaisquer vossos ásperos mandados,
Sem dar reposta, prontos e contentes.
Só com saber que são de vós olhados,
Demónios infernais, negros e ardentes,
Cometerão convosco, e não duvido
Que vencedor vos façam, não vencido.
149
Favorecei-os logo, e alegrai-os
Com a presença e leda humanidade;
De rigorosas leis desalivai-os,
Que assi se abre o caminho à santidade.
Os mais exprimentados
levantai-os,
Se, com a experiência, têm bondade
Pera vosso conselho, pois que sabem
O como, o quando, e onde as cousas cabem.
150
Todos favorecei em seus ofícios,
Segundo têm das vidas o talento;
Tenham Religiosos exercícios
De rogarem, por vosso regimento,
Com jejuns, disciplina, pelos vícios
Comuns; toda ambição terão por vento,
Que o bom Religioso verdadeiro
Glória vã não pretende nem dinheiro.
151
Os Cavaleiros tende em muita estima,
Pois com seu sangue intrépido e fervente
Estendem não sòmente a Lei de cima,
Mas inda vosso Império preminente.
Pois aqueles que a tão remoto clima
Vos vão servir, com passo diligente,
Dous inimigos vencem: uns, os vivos,
E (o que é mais) os trabalhos excessivos.
152
Fazei, Senhor, que nunca os admirados
Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,
Possam dizer que são pera mandados,
Mais que pera mandar, os Portugueses.
Tomai conselho só d’exprimentados
Que viram largos anos, largos meses,
Que, posto que em cientes muito cabe.
Mais em particular o experto sabe.
153
De Formião, filósofo elegante,
Vereis como Anibal escarnecia,
Quando das artes bélicas, diante
Dele, com larga voz tratava e lia.
A disciplina militar prestante
Não se aprende, Senhor, na fantasia,
Sonhando, imaginando ou estudando,
Senão vendo, tratando e pelejando.
154
Mas eu que falo, humilde,
baxo e rudo,
De vós não conhecido nem sonhado?
Da boca dos pequenos sei, contudo,
Que o louvor sai às vezes acabado.
Tem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.
155
Pera servir-vos, braço às armas
feito,
Pera cantar-vos, mente às Musas dada;
Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Dina empresa tomar de ser cantada,
Como a pres[s]aga mente vaticina
Olhando a vossa inclinação divina,
156
Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter enveja.
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