Prof. Dr.  Jack Brandão
 
 
Literatura

         
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OSWALD DE ANDRADE

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Testamento de um Legalista de Fraque

Por cem becos de ruas falam as metralhadoras na minha cidade natal.

As onze badaladas da torre de São Bento furam a cinza assombrada do dia, onde as chaminés entortadas pelo bombardeio não apitam.

É à hora em que eu, Serafim Ponte Grande, empregado do uma Repartição Federal saqueada e pai de diversas crianças desaparecidas, me resolvo a entregar à voracidade branca de uma folha de papel, minhas comovidas locubrações de última vontade.

Hoje posso cantar alto a Viúva Alegre em minha casa, tirar meleca do nariz, peidar alto! Posso livremente fazer tudo que quero contra a moralidade e a decência. Não tenho mais satisfações a dar nem ao Carlindoga nem à Lalá, diretores dos rendez-vous de consciências, onde puxei a carroça dos meus deveres matrimoniais e políticos, durante vinte e dois anos solares!

Recquiescat oh ex-vaca leiteira que -Deus e a Sociedade fizeram a mãe de meus filhos! Recquiescant castrados da Re-partição que diariamente me chamavam de Chocolate com ovos!

Nem um cão policial nas ruas encarvoadas. Apenas um gozo voluptuoso de pólvora penetra das ruas que escutam como narinas fechadas por essas janelas afora!

Num incêndio sem explicações, há um silêncio do tamanho do céu. Um homem passa debaixo de um saco no cosmorama desconforme.

Aqui, nesta mesa de jantar, hoje deserta como um campo de batalha, minha voz foi sempre abafada pela voz amarela de Dona Lalá. E pela do Carlidonga no tardo país que faz contas.

Mas eu sou o único cidadão livre desta famosa cidade, porque tenho um canhão no meu quintal. 

Minha esposa, tomada por engano de sensualismo num sofá da adolescência, foi o mata-borrão de meus tumultos interiores.

De noite, às quintas e sábados, fazíamos filhos com a cara enquadrada nas claridades cinematográficas da janela. Pensava no grelo de Pola Negri, ou nas coxas volumosas de Bebê Daniels. Minha esposa pensava em Rodolfo Valentino. Os filhos saíram em fila — o Pombinho atrás, com o lindo nome de Pery Astiages!

Só o Pombinho é hoje senhor deste segredo de eu possuir um canhão que os rebeldes abandonaram em meu quintal.

Comprei um Código Civil, visto que os jornais anunciam que o povo ordeiro e trabalhador, volta provisoriamente à forja das ocupações, os mendigos às pontes, os bondes aos trilhos.

Na madrugada branca e brusca, o Pombinho parte de novo para a guerra, com uma carabina às costas.

Um vento de insânia passou por São Paulo. Os desequilíbrios saíram para fora como doidos soltos. A princípio nas janelas, depois nas soleiras das portas. O meu país está doente há muito tempo. Sofre de incompetência cósmica. Modéstia à parte, eu mesmo sou um símbolo nacional. Tenho um canhão e não sei atirar. Quantas revoluções mais serão necessárias para a reabilitação balística de todos os brasileiros?

Vejo de perto uma porção de irmãos do meu canhão, alinhados nos vagões que vão perseguir os revoltados nas guaviras de Mato Grosso. A gare da luz repleta e revirada. Marinheiros ocupantes com cara de queijo de cabra. Digo a um soldado que estou à espera de minha família. E mostro-lhe meu guarda-chuva de cabo de ouro, símbolo da Harmonia.

Oficiais parecem estrangeiros que conquistaram a população de olhos medrosos.

Os paulistas vão e voltam, bonecos cheios de sangue.

Mas a revolução é uma porrada mestra nesta cidade do dinheiro a prêmio. São Paulo ficou nobre, com todas as virtudes das cidades bombardeadas.

Assoviam ninhos nas telhas. Na distância, metralhadoras metralham pesadamente.

O Pombinho regressa de carabina virginal, equilibrando a noite na cabeça de cow-boy.

Uma grinalda de fogo sobe da cidade apagada. Uma recrudescência de tiros.

Invadem o meu sacro quintal. Um sargento sem dentes, um anspeçada negro, um dentista, dois recolutas. Atiram sem mira!

Negros martelam metralhadoras. Uma trincheira real onde se digere pinga-com-pólvora! Famílias dinastas d'África, que perderam tudo no eito das fazendas — fausto, dignidade car-navalesca e humana, liberdade e fome — uma noite acordando com as garras no sonho de uma bateria. Viva a negrada! Sapeca fogo!

E os índios onde os missionários inocularam a monogamia, e o pecado original! E os filhos dos desgraçados co'as índias nuas! Vinde! Vinde destroçar as tropas do Governador-Geral! Fogo, indaiada de minha terra tem palmeiras!

Coloco o meu canhão sobre a lata vazia de um arranha-céu. Vou revelar a meus olhos a chapa fotográfica de São Paulo, branca ao sol primaveril.

As folhas das árvores explodem no silêncio semanal dos jardins. Parece que a vida parou. Soldados embalados não deixam passar. Altos lá! Quem-vens-lá?

Um sino corta pelo meio um tiro de igreja e cada bala é uma dançarina que procura o bolso de um homem.

Tudo conspira nesta cidade silente. Encontrei numa rua deserta um bonde, jogado nos trilhos, aceso e quieto. Quando me viu, zarpou num risco de fios.

O irmão do concunhado de meu barbeiro afirma que o general revoltoso regressa amanhã, trazendo a bandeira, o escudo e a coroa do Presidente. Viva a Realidade Brasileira!

O Carlindoga, no entanto, era otimista. Achava apenas que não temos cultura bastante. O país só pode prosperar dentro da Ordem, Seu Serafim!

Vai tudo raso. Parece um curso pirotécnico!

Refugio-me num mosteiro e interpelo o abade sobre a vida de São Bartolomeu, cuja estátua cheia de sangue tem uma cabeça decepada nas mãos e um facão de carniceiro. O abade responde-me que durante o flagelo da guerra, não se discutem pormenores do passado mesmo guerreiros.

Quinhentos refugiados de todos os sexos. Um tumulto na entrada hospitalar. Chegam crianças de camisolas mortas. Vêm gélidas nos automóveis baleados da Cruz Vermelha. Um homem. Tem a cabeça desfolhada como uma rosa.

As famílias são átomos. Cheios de corpúsculos polarizados. A minha família é um metal que se degrada. Para renascer. O Pombinho será o sol de um universo novo de bebês.

Sonambulismo. Domingo parecido com um dia qualquer. Gente vadia. Automóveis com lenços brancos na busca de rings imprevistos. Nocaute no Governo!

O Carlindoga é o reflexo dos altos poderes. O tirano palpável. Contra ele preparo um imenso atentado.

Um campo verde, onde há canhões ocultos, uma enfermeira grande como a caridade. Um automóvel largado numa estrada. Um cavaleiro do exército, lento, subindo por detrás de um cemitério, como em todas as guerras. Estalidos de floresta e o povo agitado, florestal.

Se o Pombinho aparecer por aqui, neste alto refúgio, onde abro o meu canhão azul, fuzilo-o!

A cidade é um mapa estratégico, fechada num canudo de luar. Gritam lá embaixo, não se sabe adonde. Há gatinhos machucados por toda a parte. Silvos e o sangue que responde. As balas enroscam-se nas árvores. Trabalham os telhados e os chicotes de aço. Vejo o fantasma do Carlindoga e o do filjio que matei. São eles, impassíveis, de fraque, chapéu alto. Passam conversando no meio das balas. Corretos, lustrosos, envernizados pela morte.

De pé! Dentro da Ordem!

Amei acima de tudo a infiel Doroteia e a minha cidade natal.

Nunca me vem à memória, senão para odiar, a minha família, desaparecida com o Manso da Repartição, numa fordinha preta, na direção da Serra dos Cristais.

Transformei em carta de crédito e pus a juros altos o dinheiro todo deixado pelos revolucionários no quarto do Pombinho.

Matei com um certeiro tiro de canhão no rabo o meu diretor Benedito Pereira Carlindoga.

A castidade é contra a natureza e vice-versa.

Minto por disciplina social e para não casar novamente na polícia.

A noite aterra de aeroplano. Vou pregar um tiro de canhão no ouvido.

Ordem do dia do povo brasileiro: GASTAR MUNIÇÃO.

Noticiário

Serafim Ponte Grande conseguira movimentar o seu canhão. A direção das granadas que tinham vasado como um olho a residência repleta do Carlindoga, indicava como ponto de eclosão dos tiros, qualquer dos enormes dados da cidade. O canhão havia agido de altura. Essa circunstância intrigou excessivamente o Gabinete de Queixas e Reclamações. Chegou-se a meditar que o artilheiro misterioso houvesse visado das pregas e precipícios do Jaraguá. E durante alguns séculos de relógios passou pela cidade a expectativa de um milagre feroz — o retorno do exército fantasma que se perdera primeiro num rio depois no coração florestal da pátria militarizada.

Nas sessões espíritas, invocou-se sem resultado a alma do almirante Custódio de Melo.

A coincidência da aproximação de Marte — esfinge do espaço — e uma comunicação oficiosa do Observatório Astronômico, atribuindo-lhe o atentado, acalmaram as populações revolucionadas.