em PDF
Testamento de um
Legalista de Fraque
Por cem becos de
ruas falam as
metralhadoras na minha
cidade natal.
As onze badaladas
da torre de São Bento
furam a cinza assombrada
do dia, onde as chaminés
entortadas pelo
bombardeio não apitam.
É à hora em que eu,
Serafim Ponte Grande,
empregado do uma
Repartição Federal
saqueada e pai de
diversas crianças
desaparecidas, me
resolvo a entregar à
voracidade branca de uma
folha de papel, minhas
comovidas locubrações de
última vontade.
Hoje posso cantar
alto a Viúva Alegre em
minha casa, tirar meleca
do nariz, peidar alto!
Posso livremente fazer
tudo que quero contra a
moralidade e a decência.
Não tenho mais
satisfações a dar nem ao
Carlindoga nem à Lalá,
diretores dos
rendez-vous de
consciências, onde puxei
a carroça dos meus
deveres matrimoniais e
políticos, durante vinte
e dois anos solares!
Recquiescat oh
ex-vaca leiteira que
-Deus e a Sociedade
fizeram a mãe de meus
filhos! Recquiescant
castrados da Re-partição
que diariamente me
chamavam de Chocolate
com ovos!
Nem um cão
policial nas ruas
encarvoadas. Apenas um
gozo voluptuoso de
pólvora penetra das ruas
que escutam como narinas
fechadas por essas
janelas afora!
Num incêndio sem
explicações, há um
silêncio do tamanho do
céu. Um homem passa
debaixo de um saco no
cosmorama desconforme.
Aqui, nesta mesa
de jantar, hoje deserta
como um campo de batalha,
minha voz foi sempre
abafada pela voz amarela
de Dona Lalá. E pela do
Carlidonga no tardo país
que faz contas.
Mas eu sou o único
cidadão livre desta
famosa cidade, porque
tenho um canhão no meu
quintal.
Minha esposa,
tomada por engano de
sensualismo num sofá da
adolescência, foi o
mata-borrão de meus
tumultos interiores.
De noite, às
quintas e sábados,
fazíamos filhos com a
cara enquadrada nas
claridades
cinematográficas da
janela. Pensava no grelo
de Pola Negri, ou nas
coxas volumosas de Bebê
Daniels. Minha esposa
pensava em Rodolfo
Valentino. Os filhos
saíram em fila — o
Pombinho atrás, com o
lindo nome de Pery
Astiages!
Só o Pombinho é
hoje senhor deste
segredo de eu possuir um
canhão que os rebeldes
abandonaram em meu
quintal.
Comprei um Código
Civil, visto que os
jornais anunciam que o
povo ordeiro e
trabalhador, volta
provisoriamente à forja
das ocupações, os
mendigos às pontes, os
bondes aos trilhos.
Na madrugada
branca e brusca, o
Pombinho parte de novo
para a guerra, com uma
carabina às costas.
Um vento de
insânia passou por São
Paulo. Os desequilíbrios
saíram para fora como
doidos soltos. A
princípio nas janelas,
depois nas soleiras das
portas. O meu país está
doente há muito tempo.
Sofre de incompetência
cósmica. Modéstia à
parte, eu mesmo sou um
símbolo nacional. Tenho
um canhão e não sei
atirar. Quantas
revoluções mais serão
necessárias para a
reabilitação balística
de todos os brasileiros?
Vejo de perto uma
porção de irmãos do meu
canhão, alinhados nos
vagões que vão perseguir
os revoltados nas
guaviras de Mato Grosso.
A gare da luz repleta e
revirada. Marinheiros
ocupantes com cara de
queijo de cabra. Digo a
um soldado que estou à
espera de minha família.
E mostro-lhe meu
guarda-chuva de cabo de
ouro, símbolo da
Harmonia.
Oficiais parecem
estrangeiros que
conquistaram a população
de olhos medrosos.
Os paulistas vão e
voltam, bonecos cheios
de sangue.
Mas a revolução é
uma porrada mestra nesta
cidade do dinheiro a
prêmio. São Paulo ficou
nobre, com todas as
virtudes das cidades
bombardeadas.
Assoviam ninhos
nas telhas. Na distância,
metralhadoras metralham
pesadamente.
O Pombinho
regressa de carabina
virginal, equilibrando a
noite na cabeça de
cow-boy.
Uma grinalda de
fogo sobe da cidade
apagada. Uma
recrudescência de tiros.
Invadem o meu
sacro quintal. Um
sargento sem dentes, um
anspeçada negro, um
dentista, dois recolutas.
Atiram sem mira!
Negros martelam
metralhadoras. Uma
trincheira real onde se
digere pinga-com-pólvora!
Famílias dinastas
d'África, que perderam
tudo no eito das
fazendas — fausto,
dignidade car-navalesca
e humana, liberdade e
fome — uma noite
acordando com as garras
no sonho de uma bateria.
Viva a negrada! Sapeca
fogo!
E os índios onde
os missionários
inocularam a monogamia,
e o pecado original! E
os filhos dos
desgraçados co'as índias
nuas! Vinde! Vinde
destroçar as tropas do
Governador-Geral! Fogo,
indaiada de minha terra
tem palmeiras!
Coloco o meu
canhão sobre a lata
vazia de um arranha-céu.
Vou revelar a meus olhos
a chapa fotográfica de
São Paulo, branca ao sol
primaveril.
As folhas das
árvores explodem no
silêncio semanal dos
jardins. Parece que a
vida parou. Soldados
embalados não deixam
passar. Altos lá!
Quem-vens-lá?
Um sino corta pelo
meio um tiro de igreja e
cada bala é uma
dançarina que procura o
bolso de um homem.
Tudo conspira
nesta cidade silente.
Encontrei numa rua
deserta um bonde, jogado
nos trilhos, aceso e
quieto. Quando me viu,
zarpou num risco de fios.
O irmão do
concunhado de meu
barbeiro afirma que o
general revoltoso
regressa amanhã,
trazendo a bandeira, o
escudo e a coroa do
Presidente. Viva a
Realidade Brasileira!
O Carlindoga, no
entanto, era otimista.
Achava apenas que não
temos cultura bastante.
O país só pode prosperar
dentro da Ordem, Seu
Serafim!
Vai tudo raso.
Parece um curso
pirotécnico!
Refugio-me num
mosteiro e interpelo o
abade sobre a vida de
São Bartolomeu, cuja
estátua cheia de sangue
tem uma cabeça decepada
nas mãos e um facão de
carniceiro. O abade
responde-me que durante
o flagelo da guerra, não
se discutem pormenores
do passado mesmo
guerreiros.
Quinhentos
refugiados de todos os
sexos. Um tumulto na
entrada hospitalar.
Chegam crianças de
camisolas mortas. Vêm
gélidas nos automóveis
baleados da Cruz
Vermelha. Um homem. Tem
a cabeça desfolhada como
uma rosa.
As famílias são
átomos. Cheios de
corpúsculos polarizados.
A minha família é um
metal que se degrada.
Para renascer. O
Pombinho será o sol de
um universo novo de
bebês.
Sonambulismo.
Domingo parecido com um
dia qualquer. Gente
vadia. Automóveis com
lenços brancos na busca
de rings imprevistos.
Nocaute no Governo!
O Carlindoga é o
reflexo dos altos
poderes. O tirano
palpável. Contra ele
preparo um imenso
atentado.
Um campo verde,
onde há canhões ocultos,
uma enfermeira grande
como a caridade. Um
automóvel largado numa
estrada. Um cavaleiro do
exército, lento, subindo
por detrás de um
cemitério, como em todas
as guerras. Estalidos de
floresta e o povo
agitado, florestal.
Se o Pombinho
aparecer por aqui, neste
alto refúgio, onde abro
o meu canhão azul,
fuzilo-o!
A cidade é um mapa
estratégico, fechada num
canudo de luar. Gritam
lá embaixo, não se sabe
adonde. Há gatinhos
machucados por toda a
parte. Silvos e o sangue
que responde. As balas
enroscam-se nas árvores.
Trabalham os telhados e
os chicotes de aço. Vejo
o fantasma do Carlindoga
e o do filjio que matei.
São eles, impassíveis,
de fraque, chapéu alto.
Passam conversando no
meio das balas. Corretos,
lustrosos, envernizados
pela morte.
De pé! Dentro da
Ordem!
Amei acima de tudo
a infiel Doroteia e a
minha cidade natal.
Nunca me vem à
memória, senão para
odiar, a minha família,
desaparecida com o Manso
da Repartição, numa
fordinha preta, na
direção da Serra dos
Cristais.
Transformei em
carta de crédito e pus a
juros altos o dinheiro
todo deixado pelos
revolucionários no
quarto do Pombinho.
Matei com um
certeiro tiro de canhão
no rabo o meu diretor
Benedito Pereira
Carlindoga.
A castidade é
contra a natureza e
vice-versa.
Minto por
disciplina social e para
não casar novamente na
polícia.
A noite aterra de
aeroplano. Vou pregar um
tiro de canhão no ouvido.
Ordem do dia do
povo brasileiro: GASTAR
MUNIÇÃO.
Noticiário
Serafim Ponte
Grande conseguira
movimentar o seu canhão.
A direção das granadas
que tinham vasado como
um olho a residência
repleta do Carlindoga,
indicava como ponto de
eclosão dos tiros,
qualquer dos enormes
dados da cidade. O
canhão havia agido de
altura. Essa
circunstância intrigou
excessivamente o
Gabinete de Queixas e
Reclamações. Chegou-se a
meditar que o artilheiro
misterioso houvesse
visado das pregas e
precipícios do Jaraguá.
E durante alguns séculos
de relógios passou pela
cidade a expectativa de
um milagre feroz — o
retorno do exército
fantasma que se perdera
primeiro num rio depois
no coração florestal da
pátria militarizada.
Nas sessões
espíritas, invocou-se
sem resultado a alma do
almirante Custódio de
Melo.
A
coincidência
da
aproximação
de Marte
—
esfinge
do
espaço —
e uma
comunicação
oficiosa
do
Observatório
Astronômico,
atribuindo-lhe
o
atentado,
acalmaram
as
populações
revolucionadas.